abr 04

Mortificatio – O que deve morrer para dar lugar ao novo (Texto 8)

 

Jung considerava a Alquimia muito ligada a aspectos psicológicos. Entrando nesse terreno, é importante dizer que as convicções religiosas de Jung não estão em questão, por isso já pontuei que o enfoque dado é o psicológico.

No mundo ocidental temos a nítida polaridade entre o bem e o mal, herdada pelas religiões cristãs. Para Freud, a religião era algo pernicioso e comparada à neurose obsessiva. A ciência era a última palavra e as pessoas só se apegavam à religião porque eram ainda muito infantis. A religião consolava o homem imaturo diante de seu desejo infantil de ter uma proteção diante da imensidão da vida. O ego não dá conta de se defender contra os impulsos obsessivos e cria rituais para controlar a angústia – o que para Freud equivale aos rituais religiosos.

Mas da mesma forma que esses rituais não “funcionam”, não dão conta da neurose obsessiva, os rituais religiosos também não dão conta dessa imaturidade. Ainda para Freud, o homem precisa crescer, amadurecer e perceber o caminho da ciência como resposta.

Para Jung, essa questão assume outro contorno: ele valoriza o sagrado e o localiza em tempos mais primordiais. O sagrado coloca o homem em contato com o sagrado arquetípico. Isso não é uma defesa, mas um impulso natural do homem, um impulso à curiosidade, à criatividade, na direção do Self. O ego busca experiências que o ulrtapassem – experiências numinosas.

A única experiência que ultrapassa o ego é o contato com a energia arquetípica, é a conexão com o Self. Conectar-se ao Self faz parte do impulso natural do ser humano, e essa conexão pode se dar no plano religioso, estético, científico.

A partir disso, Jung vai fazer uma análise da religião cristã no Ocidente. A igreja formatou o mundo dividido em duas partes: o Bem (Cristo) e o Mal (Diabo). Essa divisão radical trouxe enorme sofrimento para o homem cristão, pois ele é impelido a se identificar com o bem e o mal deve ser descartado. Em termos junguianos, o equivalente do mal seria a Sombra.

Para Jung, as polaridades não são separadas, e o processo de individuação começa quando a pessoa percebe o mal que há nela – isso significa recolher as projeções e entrar em contato com os conteúdos da própria Sombra.

A proposta de Jung em relação ao “Mal/Sombra” é o confronte e não a repressão. E um dos grandes problemas do homem moderno é não entrar em contato com a Sombra.

E sabemos que toda vez que o consciente reprime algo, surge uma resposta compensatória, para que se mantenha o equilíbrio da psique. Em um nível coletivo, para Jung, essa resposta diante da repressão imposta pelo pensamento cristão foi a Alquimia.

A Alquimia, simbolicamente, é a tentativa de trabalhar o mal, dentro do processo alquímico.

A Opus é formada por três fases – nigredo, albedo e rubedo.

Vamos falar da Nigredo nesse momento. É a fase do escuro total. Mas o alquimista não reprime esse escuro, ele o coloca na obra para que possa transformá-lo. É entrar na noite escura e se manter lá até que possa ter acesso à luz.

Podemos perceber que os polos contrários atuam de forma complementar, por exemplo: toda doença é um caminho para individuação, pois pode mobilizar na pessoa uma energia muito grande em busca da vida, da superação.

O Mal na Idade Média (quando a Alquimia estava nascendo), era identificado com a matéria – “O mundo material era o mundo do pecado”. Somos todos herdeiros do pecado original de Adçao e Eva. Mesmo que a pessoa não acreditasse nessa história, os reflexos da mesma impactavam o seu insconsciente, de forma que todos queriam buscar o paraíso. Nesse sentido, há um desejo de perfeição que impede a pessoa de aceitar a parte ruim de tudo que vem com o que é bom.

E o trabalho de toda uma vida é justamente a integração dos opostos.

Ora, se o mal está na matéria, nosso corpo é a primeira relação que estabelecemos com a matéria. Portanto, isso impacta a nossa relação com o corpo – muitas vezes, essa relação com o corpo é incosciente, há pessoas que não habitam o corpo! E isso implica em questões emocionais, pois a dimensão biológica do ser humano não está separada da dimensão psicológica – portanto, ter uma relação distanciada com o nosso corpo, reflete em nossos sentimentos, nossas sensações e percepções.

Para os gregos, o mundo dos sentidos (matéria), “atrsapalhava”. Com o cristianismo, o corpo (matéria) se transforma em fonte do pecado.

O mal está no corpo, na matéria e no modo de pensar o princípio feminino, pois é a partir do princípio feminino que o homem se aproxima do mundo pela via do afeto, da intuição e da imaginação.

Afeto, intuição e imaginação foram reprimidos pelo modo de penar ocidental e a Alquimia vai resgatar justamente essas três dimensões do humano. Portanto, a Alquimia é o contraponto para se encontrar o equilibrio nesse mundo dicotomizado.

Vamos passar para a análise de algumas imagens:

Nessa figura temos um homem cortado em pedaços, o que significa que temos que temos que separar as coisas para entendermos melhor o que está acontecendo. É um processo doloroso, de tomada de cosciência de coisas que antes passavam despercebidas. Na figura, temos um mouro – o escuro, o diferente. É ele que corta, esquarteja, separa. Ele é o representante da sombra, na Alquimia. A cabeça que ele segura é dourada, resultado desse processo de iluminação. Essa é uma imagem importante que representa o resgate de coisas inconscientes.

Na próxima figura temos a morte do rei:

 

O rei velho está morrendo e o rei novo está nascendo. É preciso deixar algo morrer para deixar nascer outra coisa, é um processo difícil, por isso muitas vezes nos agarramos ao velho, ao conhecido, mas qe não tem mais utilidade. Isso que é velho hoje, já foi apropriado, ma a vida mudou e requer novas percepções. Esse é o momento que pode surgir o medo de arriscar algo novo, e isso traz sofrimento, pois não deixamos a libido fluir. O medo de mudar é a falta de conexão com o Self. O ego se sente abandonado, sem saber o que fazer. Nesse processo, precisamos enfrentar a morte de algo que já foi bom e que precisa mudar.

A imagem seguinte apresenta a sombra de uma figura humana, com três cores (preto, branco e vermelho) e um anjo. A sombra é a prima matéria, aquilo que precisa ser trabalhado e passar pelas três fases da Opus – nigredo, albedo e rubedo. O anjo representa o princípio espiritual da Alquimia, princípio transformador. É preciso confiar que o anjo virá, na forma de intuição, inspiração, inconsciente criativo, e ao se manifestar acontece a integração.

A Mortificatio é o afastamento do Self, a noite escura da alma, quando a pessoa não vê saída e precisa acreditar em algo. Esse algo está dentro dela, e será constelado em uma atitude de entrega.

Na quarta figura, temos a árvore filosófica. Aqui, temos a tarefa do alquimista que é resgatar o espírito da natureza. Temos dois alquimistas, um vestido de vermelho e outro de branco, que representam as fases rubedo e albedo, respectivamente, e um ajudante, vestido de preto – nigredo. Esse resgate é um trabalho processual e passa, necessariamente, por todas essas fases.

 

A quinta figura representa a brincadeira da criança, que é o momento da obra em que você já fez tudo e o que resta é esperar as coisas acontecerem. É uma fase ligada ao feminino, à natureza que não pode ser apressada. Todas as coisas amadurecem ao seu tempo – é assim na natureza e é assim em nós também!

Precisamos saber esperar, descobrir uma espera que pode ser lúdica, leve. Quando sabemos que esperamos e temos consciência do por que e para que esperamos, vivemos uma espera sábia e preciosa.

A próxima imagem nos mostra a Alquimia como uma mulher, que mantem um pé em cada forno alquímico. Mediadora entre todos os opostos, a árvore filosófica, é Sophia, noiva dos filósofos e alquimistas. Novamente aqui podemos observar atributos do feminino: saber esperar, ouvir seu interior, ter calma e acolher conteúdos inconscientes.

Na sétima figura, temos abaixo o alquimista, o forno e sua companheira. Energia masculina e feminina consteladas para obter o equilíbrio – plano egóico. No plano superior se constela a energia arquetípica. Temos o vaso alquímico, onde as coisas são gestadas e o sol, que representa a consciência iluminada. E os anjos, são o princípio espiritual.

E para fechar esse post, deixo alguns conselhos dos alquimistas, para lidar com o nigredo, a Sombra. Lembrando! O processo de individuação começa com o enfrentamento da Sombra.

PACIÊNCIA

Jung diz para termos cuidado com o que abandonamos, pois o que abandonamos se torna desumano. Podemos exemplificar pontuando a repressão, que é uma forma de não lidar com o que incomoda. Se eu não acolho um conteúdo, ele é reprimido e vai apodrecendo dentro de mim. Tudo tem que ser transformado dentro de nós, mas temos que ter paciência, pois esse é um processo que demora… enquanto não trabalhamos nossos conteúdos reprimidos, ficamos reféns deles.

AMPLIAR OS PONTOS POSITIVOS PARA LIDAR COM O MAL

É o trabalho oposto. Se ficamos olhando muito para o mal, podemos ser engolidos por ele, porque o mal é fascinante, simplesmente porque são coisas que temos dentro de nós e precisamos trabalhar com elas.

Uma forma de trabalhar esse contraponto é através do trabalho corporal – relaxamento, por exemplo: leva a pessoa para um outro lado, mais sutil, mais criativo. Abre-se uma porta para um sopro de ar fresco entrar. Não é nada racional, mas a pessoa já fica diferente. Só pela palavra, falar sobre, falar, falar… muitas vezes não é alcançado o mesmo resultado que pode ser alcançado com um relaxamento e um trabalho arteterapêutico, por exemplo. Ao ficar só na fala, corre-se o risco de reforçar o logos, o discurso racional, e não entrar, de fato, em contato com aquilo que é importante.

PERCEBER A UNILATERALIDADE

Quando a reação emocional for exacerbada, apontar isso. O mesmo deve acontecer com a racionalidade. Perceber esse desequilíbrio já é uma possibilidade de mudança.

IDENTIFICAR AS VOZES SABOTADORAS

Os mitos e os contos de fadas falam muito desse aspecto (as irmãs invejosas da Cinderela ou da Psique, por exemplo). Para crescer, a consciência tem que ver as coisas, tem que enfrentar os desafios. Por outro lado, existem as vozes sabotadoras: “Ah! Mas isso você não vai conseguir!” Sempre existe um lado que puxa para trás. Existem as vozes prudentes, que são a nossa intuição, mas existem as outras que constituem o nosso movimento de autosabotagem. Saber diferenciar tudo isso é um trabalho imenso! Cada um precisa perceber que está dentro de si a condição de crescimento, independente das condições favoráveis ou desfavoráveis que o meio externo pode oferecer. Cabe a cada um aprender a lidar com essas condições da melhor maneira possível!

E por fim, NÃO DESANIMAR COM OS RETROCESSOS, afinal, nosso caminho não é uma linha reta, e sim uma jornada cheia de curvas, altos e baixos, desafios que nos ajudam a crescer e descobrir os caminhos para a nossa transformação interna. É realmente um belo trabalho!

mar 15

Dia Internacional das Danças Circulares Sagradas – 14/03/2017

 

Comecei a dançar em roda há pouco mais de dois anos, e me apaixonei no exato momento em que, de mãos dadas, fui conduzida pela força do círculo, pela música dos quatro cantos do mundo e pelos passos cheios de sentido. Entendi que ali algo muito especial acontecia, e que nem sempre pode ser nomeado, basta ser vivido.

Ontem, dia 14/03, comemoramos o Dia Internacional das Danças Circulares Sagradas. Não consegui postar esse texto ontem, mas corri aqui para deixar minha homenagem a esse movimento tão lindo e singelo.

A partir da minha participação em grupos de Danças Circulares, tenho tido muitas surpresas agradáveis: pessoas que despertam para vida, sentimentos acolhidos através de mãos dadas, conscientização do cuidado com o planeta, integração com o nosso centro, olhares expressivos que se comunicam sem palavras, mas através de uma fala que vem do coração. Dançar em roda é resgatar nossas raízes, acordar nossa criança interna, descobrir cantinhos escondidos dentro de nós mesmos, abrir-se para o outro e ter a oportunidade de ser acolhida por ele.

É incrível o poder que tem um grupo de pessoas que dançam de mãos dadas em círculo! Talvez porque a dança seja uma das manifestações humanas mais antigas. Isso é um fato que a arqueologia nos mostrou através das pinturas rupestres de rodas de dança, as quais possivelmente tinham um caráter ritualístico, sagrado. Avançando no tempo, constatamos a presença da dança em momentos importantes como: nascimento, morte, casamento, comunicação com os deuses, época das colheitas, entre outrosm de acordo com a cultura de cada povo.

Bernhard Wosien, bailarino e coreógrafo alemão, nos anos 60, começou a se dedicar ao estudo das danças tradicionais de diversos povos, e em 1976 foi convidado a ensinar essas danças em uma comunidade no norte da Escócia, chamada Findhorn. Foi assim que nasceu o movimento que conhecemos hoje como Danças Circulares Sagradas.

O movimento chegou no Brasil em 1987, apresentado por Carlos Solano Carvalho, que morou em Findhhorn durante seis meses, mas ganhou força mesmo a partir de 1995, com a focalizadora Renata C. L. Ramos e Sirlene Barreto. Hoje podemos encontrar focalizadores de DCS em diversas cidades do país.

Não há limite de idade: dançam crianças, jovens, adultos e idosos. Não há o passo errado ou o “ter que saber dançar”, e sim a vontade de dançar.  Segundo Maria Angélica de Melo Rente, “Seu poder de integração e resgate do sagrado na vida cotidiana fez com que as Danças passassem a ser utilizadas em diferentes contextos, entre eles o educacional, o corporativo e o da saúde”.

Com esse texto, quero prestar a minha homenagem a todos os focalizadores de Danças Circulares Sagradas, principalmente os que conheci e tive o prazer de dançar de mãos dadas – todos muito especiais e queridos!

E para fechar o post, uma curiosidade: o dia 14/3 foi escolhido como Dia Internacional das Danças Circulares por fazer referência ao número “Pi”, aquele que aprendemos nas aulas de matemática, o 3,14. Segundo Renata Ramos “O dia escolhido está diretamente conectado à geometria, à serie Fibonacci, que na literatura é representada pela letra grega PI. Muito resumidamente, essa medida áurea traduz a beleza da natureza e sua evolução em espirais. Olhando para um girassol ou uma margarida é possível entendê-la”.

 

Escrito por Anna Paula R. Mariano

mar 06

UMA POSSÍVEL COMPREENSÃO FENOMENOLÓGICA EXISTENCIAL DA CLÍNICA PSICOLÓGICA

Texto escrito por Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto (Doutora em Psicologia, Professora adjunta da Universidade Católica de Pernambuco vinculada ao Programa de Pós-graduação – Mestrado em Psicologia Clínica, coordenadora do LACLIFE- Laboratório de Psicologia Clínica Fenomenológica Existencial e pesquisadora do CNPq- integrante do Grupo de pesquisa em Psicologia Clínica)

 

Hoje compartilho um artigo muito interessante sobre a Psicologia Clínica na abordadem Fenomenológico-Existencial:

 

A intenção primordial deste ensaio é apresentar uma reflexão de como a Analítica Existencial de Heidegger poderia fecundar a clínica psicológica, aqui compreendida como espaço aberto, condição para emergência dos fenômenos clínicos na sua singularidade e força de apresentação, as quais, por sua vez, exigem modos correspondentes de acolhimento, interpretação e ação.

É importante ressaltar que não é nosso objetivo aplicar as concepções de Heidegger acerca do humano como um conhecimento sistemático do qual derivam modos e métodos de intervenção clínica. Trata-se, sobretudo, de deixar-se afetar pela mediação heideggeriana, de deixar-se encontrar com o pensamento heideggeriano como outra possibilidade de acolher e compreender a demanda clínica deixando-se afetar por ela e, a partir deste acolhimento, conceber possibilidades de como responder a ela.

Tal demanda perece suscitar um cuidado de si marca fundamental na Antiguidade, da experiência ética, gradativamente esquecida e silenciada pela modernidade, que, ao instituir uma outra ética, passa a enfatizar categorias de subjetivação e de tecnologias de si. Como resultado, deparamo-nos com a produção de práticas clínicas que, destacando a dimensão das técnicas, são marcadas pela filosofia do sujeito numa tradição metafísica. Nessa filosofia, segundo Birman (2000), a verdade do sujeito se inscreve na produção da subjetividade, concebida como a exigência de saber sobre si.

Partindo de tal compreensão, Birman (2000), levanta uma questão extremamente importante que incide sobre a constituição das práticas clínicas ao apontar para dois pólos constitutivos, o cuidado e o saber de si, como possibilidades diferentes de conceber e efetivar a ação clínica.

A clínica psicológica, ao assumir como pressuposto o cuidado de si, compromete-se em manter contato estreito com a experiência do cliente, renunciando as posturas de controle e de previsão do processo clínico. Para firmar essa posição clínica precisa efetivar a passagem do espaço psicológico atrelado à dimensão da ciência moderna – com projeto epistemológico regido por versões normativas e judicativas – para outro espaço de constituição da psicologia que enfatize a dimensão ética dos discursos e da prática psicológica.

Assim compreendida a clínica vincula-se à linguagem como possibilidade de levar algo à luz, trazer algo para a des-ocultação. Nesse processo, a linguagem é desvinculada da noção de instrumento complexo de representação de objetos por parte de um sujeito, apoiada no pressuposto de que os sujeitos e suas experiências preexistem a qualquer articulação da linguagem. Com Heidegger(1989) e Gadamer(1997), a linguagem é tomada como meio universal de experiência, compreensão ancorada no entendimento heideggeriano de linguagem – ato de nomear -, a qual pode instalar o ente na clareira do ser e abrir para ele o que aparece como imprecisão e inquietação, já que, originalmente, dizer significa “mostrar”. Diante de tal perspectiva, a linguagem apresenta-se como meio onde estamos imersos, constituímo-nos e onde os objetos de nossa experiência se constituem.

Nesse contexto, a linguagem refere-se à língua – meio no qual estamos imersos e nos constituímos -, pois não existimos, senão no-mundo e na-língua. O mundo-língua, na situação clínica, não tem dimensão regulativa, mas sim constitutiva, e transita pela dimensão poética da fala, suscitando distinção entre a fala do cotidiano e a fala poética. A primeira nutre-se do “impessoal”, no qual se vive a maior parte do tempo como abrigo para exorcizar a angústia e fugir da inóspita responsabilidade de encarregar-se de sua própria decisão e mistério. A segunda, fala poética (poiesis), abre-se como disponibilidade para a escuta do que não está plenamente disponível, des-velado; solta a linguagem para a aventura de des-cobrir e recriar o sempre novo de si e do mundo.

Essa linguagem busca encontrar o interlocutor em seu espaço de liberdade: “quando me expresso poeticamente, o outro não é obrigado a concordar comigo […] no entanto, tenho uma grande expectativa de que ele possa me compreender, dentro da não-necessidade de compreender” (POMPÉIA, 2004, p. 158). Configura-se, assim, o acontecer clínico por meio da linguagem da poiesis. Nesse âmbito da linguagem, a compreensão acontece no diálogo, via afetação e disponibilização, o qual exige co-respondência, consenso hermenêutico e ação.

Tal compreensão, ao superar a hegemonia do pensamento representacional e a noção de verdade como adequação e correspondência, remete ao entendimento de linguagem desvinculada da noção de instrumento complexo de representação de objetos, apoiada no pressuposto de que os sujeitos e suas experiências preexistem a qualquer articulação da linguagem e remete à dimensão hermenêutica da linguagem.

De acordo com Váttimo (1996, pp.143-144), “ao pensamento da explicação, Heidegger opõe agora o pensamento hermenêutico como escuta da linguagem na sua essência poética (isto é, toda a linguagem na sua força de abertura e fundação)”. Nessa perspectiva, a hermenêutica interpreta a palavra sem a esgotar, respeitando-a na sua natureza de permanente reserva. Assim, na situação clínica, o cliente se compreende, dá-se a compreender nessa relação, para si e para o terapeuta, abre-se para a experiência que deseja expressar e mantém a dimensão do não-dito como reserva permanente.

A recusa à explicitação total e o conseqüente esforço para construir uma hermenêutica da escuta levam o ato de falar e escutar à possibilidade de “pensar” a própria vida. Pensar, nessa situação, não se vincula ao pensamento que calcula: passa de oportunidade em oportunidade; faz cálculos com perspectivas sempre novas e mais econômicas; não reflete “sobre o sentido que reina em tudo que existe” (HEIDEGGER, 1959, p.13). Pensar, na clínica, aproxima-se da reflexão, no sentido heideggeriano de meditação, cujo significado não se restringe ao estar consciente de algo, mais vai além da consciência cartesiana, constitui-se como base para a atitude possível de “serenidade frente ao mistério”, na disponibilidade para o abandono àquilo que merece ser interrogado.

É esse pensar que carece de cuidados na situação clínica. Tal modo de pensar possibilita romper a armadura dentro da qual habitamos e que se tornou invisível pelo tempo – estrutura que preenche todos os lugares e não deixa espaço para ser eu-próprio singular. A ação clínica pode por em andamento o que já é próprio do humano, ajudando-o a “pró-curar” aquilo de que foge: a morada no sentido e o habitar des-cobrindo ele mesmo e o mundo, relançando-o na sua existência, a fim de que pense a própria vida.

Assim, a situação clínica começa ao se configurar como espaço privilegiado para libertar a fala e a ação submissa aos problemas herdados e ao consenso público. É constituída pelo dizer-escutar, permite o tematizar do sofrimento e o encaminhar do des-mascaramento do habitual. Pode levar à abdicação da “segurança da realidade” e encaminhar a pessoa-cliente para “saber” que habita na interpretação.

Em tal situação, a fala, ao ser vinculada ao ato de nomear, não está articulada à explicação ou à decifração; ao contrario, o nomear, ao dizer o que se mostra no oculto, pressupõe a pré-compreensão ou compreensão não tematizada que funda a interpretação, demandando resposta a algo que solicita.

Tal fala permite o vir-a-ser propriamente que, numa perspectiva heideggeriana, abre-se como um mistério a ir-se des-velando e constituindo aos poucos; dela nada sabemos antecipadamente e, como possibilidade projetada sempre para diante, é imodelável pelo presente. Assim, abre-se como possibilidade para os modos de ser-no-mundo se constituirem, libertando a palavra para o seu dizer outro, não-definível em conceitos ou idéias. Nesse outro dizer, “fenomenologicamente, ser faz sentido diante de se ser mesmo, de se estar existindo e não diante da conceituação” (Critelli,1996, p.127). A configuração mais tangível do apropriar-se do ser, para ser propriamente, passa pela decisão de projetar-se em direção de dar conta de ser, seguindo suas próprias possibilidades. Essa é sua liberdade, implicando um poder de querer ser si mesmo, assumir a possibilidade de ser realizador de cuidados.

Tal fala nos remete à questão da escuta: não é o eu que fala que precisa ser efetivamente escutado. A fim de prosseguir na direção da questão do que é escutar a fala mesma, é preciso compreender o sentido de experiência na concepção de Heidegger. Na dimensão heideggeriana, experiência consiste em ser “afetado” e “transformado” num encontro com o outro na sua alteridade, um acontecimento dramático que supõe o estar instalado num mundo como horizonte de encontros. Esse horizonte, ao mesmo tempo, abre-se para transformações e resiste e se opõe a qualquer captura pelo outro.

Aqui, mais uma vez, a “meditação heideggeriana” convida para um novo encontro com a clínica. Logo, torna-se necessária uma via de encontro que, ao passar pela fala e escuta, nos remeta à “relação” que se estabelece entre quem fala e quem escuta, circunscrevendo as diversas possibilidades de relação com o outro que busca ser acolhido no seu sofrimento – pode ser o cliente de um consultório psicoterápico ou de um hospital; um grupo de pessoas em atendimento psicológico ou um aluno/estagiário em supervisão; ou ainda uma mãe com seu filho ou uma equipe de profissionais de uma instituição. Tal relação permite o contato com a dimensão fenomenológica da experiência, que já inicia seu trânsito, mesmo em um sentido ainda não des-velado.

Nos atendimentos psicológicos a escuta atenta e o disponibilizar-se do psicólogo, mais do que as intervenções verbais de caráter explicativo/racional, se oferecem como “ente-à-mão”, que poderá ser assumido e usado de acordo com a singularidade de cada pessoa, na tentativa de cuidar do que precisa ser cuidado, a sua própria existência.

Essa compreensão de “cuidado” aponta para possibilidades de ressignificação da ação do psicólogo clínico que, ao assumir a clínica como modo ôntico possível próprio de cuidar, se preocupa com o acontecer do cliente. Nessa direção, a prática psicológica enquanto “ação pré-ocupada”, revela-se atenta ao modo de o cliente viver o seu cuidar, a sua existência, a sua história.

Cuidar, convém ressaltar, não pode ser considerado atividade específica das práticas psicológicas. Enquanto manifestação ôntica refere à configuração concreta do modo constitutivo da existência humana que se apresenta como “estrutura de cuidar”. Assim, a clínica como cuidado remete aos modos possíveis de cuidar num determinado tempo e numa determinada situação. Tal ação abre-se para a escuta de um falar de um existente que vai além de uma ação exercida num plano meramente teórico-científico e ou técnico e, ao contrário, exige conversão teórica no sentido de evitar qualquer tentação de “objetivação” da experiência, que funcionaria como paradigma prévio, muito eficaz, mas incapaz de manter-se na abertura à acontecência, portanto “cego” para o fenômeno na sua singularidade.

Nessa direção, “pré-ocupar-se com o outro é não substitui o outro no seu cuidar nem roubar o seu cuidar, mas antecipa-se a ele em seu poder-ser existencial, devolvendo o cuidar a ele. É pôr em claro a possibilidade de estabelecer outras formas de relação e habitar outros mundos, abrindo para o outro a possibilidade de liberdade onde o outro é deixado entregue ao seu poder. Atitude que afirma o cuidado como constituição ontológica do humano, já que “o homem não tem cuidado, é cuidado” (Almeida,1999:46).

Desse modo, a ação clínica busca propiciar ao cliente tornar-se narrador de si mesmo pela escuta atenta do psicólogo, que cuida do exercer de um dizer apropriado e encarnado. O psicólogo clínico atua comprometido com o significado-sentido, apontado na relação com o cliente, agora ouvinte. Tentando manter o transitar, abre a possibilidade para o cliente também se comprometer com a narrativa de sua própria história de vida e caminhar na passagem da vivencia para a experiência, assumindo-se explicitamente, como cuidado, ao vislumbrar um destino possível. Destinar-se é criar um sentido possível, respondendo ao destino.

Caberia, então, a relação clínica acolher o “sentido”, aqui compreendido como destinação, que se aloja nas tramas construídas no modo cotidiano de viver no mundo. O “sentido” nos remete para uma das dimensões de “cuidado”, implicando assumir que o homem existe, cuidando de existir. Nessa perspectiva, toma sob seu cuidado o que pertence a sua existência, o que remete para a maneira como somos “afetados” pelas coisas e ou pelos outros que estão aí, no mundo.

O homem existe lançado no mundo, na facticidade do cotidiano, enredado nas circunstâncias estruturais já interpeladas pelo público. Tem como tarefa, cuidar da própria existência que se apresenta como pura possibilidade e abertura ao ser. Assim, a possibilidade implica ser livre para o mais peculiar poder-ser: entre a responsabilidade de ser, o homem deve, permanentemente, abrir-se para suas possibilidades, dar-lhes sentido e escolhê-las de modo a encaminhar sua existência.

Como homem singular, o poder-ser é livre para modalizar, impropriamente, suas possibilidades cotidianamente como a-fim-dos-outros e também poder acolher criativamente, desde o mundo seu próprio destinar-se (sentido), suspenso em suas possibilidades, existindo a-fim-de-si-mesmo.

Portanto, a ação clínica assim compreendida rompe com o modo de contato construído numa concepção técnico/explicativa, constituindo-se numa disponibilidade para acompanhar o outro (cliente) em seu cuidar das suas possibilidades mais próprias, dispondo delas livremente e com responsabilidade.

Para Medard Boss (1997) a prática clínica pode ser compreendida como

“… o fato dela mesma ser livre e permitir aos homens tornarem-se livres dentro dela. Como psicoterapeutas queremos, no fundo, libertar nossos pacientes para si mesmos […] Com a libertação psicoterápica queremos levar nossos pacientes “apenas” a aceitar suas possibilidades de vida e dispor delas livremente e com responsabilidade” (1977:61, grifos do autor).

Nessa direção, precisa envolver-se com um procedimento co-humano criativo não apreensível por teorias que descendem do subjetivismo e do conceito cartesiano de homem e de seu mundo. Para se alcançar esta nova compreensão, é preciso dar um salto indispensável – do subjetivismo e psicologismo abstrato das ciências humanas, derivadas do pensamento moderno, para uma atitude de abertura ao mundo que ampara e guarda seu aparecimento. Tal salto rompe com as interpretações teóricas fundamentadas numa psicologia subjetivista e tecnicista e assume o modo de ver e conhecer fenomenológico, compreendido como as várias maneiras pelas quais algo se mostra, se desvela, se torna presente a nós (HEIDEGGER, 1989). Assume, também, a compreensão do existir humano, enquanto meras possibilidades de poder-apreender os sentidos daquilo que aparece e se lhe fala, através da maneira própria pela qual se mostra.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, F. M. Aconselhamento Psicológico numa visão fenomenológicoexistencial: cuidar de ser. In MORATO, H. T. P. Aconselhamento Psicológico Centrado na pessoa: novos desafios. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.

BIRMAN, J. Entre cuidado e saber de si: sobre Foulcault e a psicanálise. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.

BOSS, M. AngústiA, Culpa e Libertação: ensaios de psicanálise existencial. São Paulo: Duas Cidades, 1977.

CRITELLI, D. M. Analítica do Sentido: uma aproximação e interpretação do real de orientação fenomenológica. São Paulo: EDUC/ Brasiliense, 1996.

GADAMER, HANS-GEORG. Verdade e Método. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. HEIDEGGER, M. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 1959.

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 1989.

POMPEIA, J. A.; SAPIENZA, B. T. Na presença de sentido: uma aproximação fenomenológica a questões existenciais básicas. São Paulo: EDUC/ Paulus, 2004.

VÁTTIMO, G. Introdução a Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.

mar 06

O que você deixou de ser quando cresceu?

Sempre me incomodei com a frase “O que você vai ser quando crescer”, dita para as crianças. É como se ela ainda não fosse, ou não estivesse SENDO! A criança já é inteira em seu mode de ser aqui e agora.Claro que ela vai mudar, vai se desenvolver, vai amadurecer e descobrir outras formas de ser.E o mais intrigante é que algumas características que seriam tão importantes para a vida adulta, muitas vezes vão se perdendo pelo caminho, como por exemplo: a capacidade de brincar, a leveza, o mergulho no momento como se não houvesse amanhã, um olhar descomplicado para as coisas da vida… enfim, quando me deparei com essa imagem, com a pergunta que ela nos apresenta – “O que você perdeu quando cresceu?” – achei tão perfeito, tão profundo, que não podia deixar passar! É uma bela reflexão, que nos conduz ao caminho do encontro com nossa criança interna, no resgate daquilo que esquecemos, mas faz parte de nós

 

fev 06

Movimento

fev 06

Guimarães Rosa

fev 06

Florescer

fev 06

Texto extraído do livro “O Livro Tibetano do Viver e do Morrer” – Sogyal Rinpoche – Editora Talento / Palas Athena

1. Ando pela rua.
Há um buraco fundo na calçada.
Eu caio…
Estou perdido… sem esperança.
Não é culpa minha.
Leva uma eternidade para encontrar a saída.
2. Ando pela mesma rua.
Há um buraco fundo na calçada.
Mas finjo não vê-lo.
Caio nele de novo.
Não posso acreditar que estou no mesmo lugar.
Mas não é culpa minha.
Ainda assim leva um tempão para sair.
3. Ando pela mesma rua.
Há um buraco fundo na calçada.
Vejo que ele ali está Ainda assim caio… é um hábito.
Meus olhos se abrem.
Sei onde estou.
É minha culpa.
Saio imediatamente.
4. Ando pela mesma rua.
Há um buraco fundo na calçada.
Dou a volta.
5. Ando por outra rua.

fev 06

Sobre a Arteterapia

A Arteterapia é ao mesmo tempo um campo de conhecimento e um fazer prático. Enquanto campo de conhecimento localiza-se na interface de diversas saberes – Psicologia, Pedagogia, Arte, Filosofia. Como fazer prático, utiliza-se de recursos artísticos empregados através da relação arteterapeuta/cliente, em contexto terapêutico.

Segundo Ciornai,

Arteterapia é o termo que designa a utilização de recursos artísticos em contextos terapêuticos. Essa é uma definição ampla, pois pressupõe que o processo do fazer artístico tem o potencial de cura quando o cliente é acompanhado pelo arteterapeuta experiente, que com ele constrói uma relação que facilita a ampliação da consciência e do autoconhecimento, possibilitando mudanças. (2004, p.7)

Os recursos artísticos utilizados no processo arteterapêutico devem respeitar alguns critérios importantes para que os objetivos do trabalho sejam atingidos. Em relação aos recursos artísticos, Bernardo refere que,

sua utilização deve estar em sintonia com o tema e questões que se pretenda trabalhar, adequando-se ainda à população, idade e contexto, para atender às necessidades específicas do(s) cliente(s), é de extrema importância que o arteterapeuta fundamente a sua prática e propostas no conhecimento teórico e na vivência pessoal a respeito de cada recurso utilizado em seu trabalho e suas indicações. (2013, p.11)

A Arteterapia pode ser desenvolvida em diversos contextos e por profissionais de áreas diferentes, dentro das profissões que cuidam do humano e dialogam entre si (psicoterapeutas, psiquiatras, fonoaudiólogos, psicopedagogos, arte-educadores). Essa diversidade também abrange a orientação teórica que fundamenta o trabalho arteterapêutico. Por ser um campo tão vasto de possibilidades, a Arteterapia comporta o trabalho individual ou grupal, abrangendo todas as faixas etárias.

O trabalho arteterapêutico deve ser entendido como um processo no qual é possível observar, através da relação arteterapeuta/cliente, as transformações que ocorrem na psique daqueles que participam desse trabalho, e as novas configurações que surgem no cotidiano de cada indivíduo, na construção de histórias de vida onde escolhas autênticas se façam mais presentes. (BERNARDO, 2013)

É interessantes observarmos o quanto a Arte nos permite a expressão de conteúdos internos, o contato e elaboração de sentimentos e vivências, muitas vezes através de uma via não-verbal, abrindo espaço, de forma criativa, para uma compreensão mais ampla dos processos psíquicos em interação com o ambiente. Podemos dizer que a Arte é um caminho de expressão das emoções, caminho este que facilita o encontro de cada indivíduo com o seu si mesmo. É como nos diz Bernardo:

(…) Arteterapia consiste em concretizar fora de nós, através de recursos expressivos, as imagens que nos habitam, o que nos ajuda a perceber o fio que reúne essas imagens numa única narrativa, propiciando a nossa participação consciente na criação de nosso mito pessoal. (2012, p. 20).

O fazer em Arteterapia não exige técnica e nem está ligado a padrões estéticos que facilmente inibiriam a expressão dos conteúdos de cada indivíduo. A liberdade de expressão é a moldura do setting terapêutico, uma vez que é necessária uma atmosfera acolhedora que facilite o despertar da criatividade, livre de julgamentos estéticos ou morais. Tudo o que é produzido é acolhido pela compreensão. (BERNARDO, 2013).

É importante refletirmos sobre o potencial criativo do humano em um momento social onde tudo é tão massificado, onde o tempo é apenas o cronológico, e o script a ser seguido já está dado. Um momento em que as relações se inscrevem no mundo virtual, muitas vezes de forma distante e vazia, onde sentimentos são banalizados e conseguimos perceber a alienação por todos os lados.

Poder se diferenciar da massa e caminhar em busca de verdades próprias, de forma criativa e autêntica é o foco de interesse deste trabalho. Para isso, a Arteterapia é, por excelência, um contexto que permite o resgate dessa criatividade, tão necessária para a busca de novos caminhos, novos contornos, que promovam a saúde e o equilíbrio em todos os sentidos – físico, mental, psicológico e espiritual. Ao acessar seu potencial criativo, o indivíduo está em contato consigo mesmo e isso permite que ele possa trazer à luz as suas questões para serem devidamente trabalhadas no contexto terapêutico.

BERNARDO, P. P. A prática da Arteterapia: correlações entre temas e recursos. Vol. I: Temas Centrais em Arteterapia. 4. ed. São Paulo: Arterapinna Editorial, 2013.

CIORNAI, S. (org.) Percursos em Arteterapia: arteterapia gestáltica, arte em psicoterapia, supervisão em arteterapia. São Paulo: Summus, 2004.

 

fev 06

A importância dos Mitos na Psicologia e na Arteterapia

Por que a Psicologia muitas vezes utiliza os mitos? De que forma eles permanecem significativos para nós? Vocês já perceberam que ao ouvir um mito, alguns conteúdos afetivos essenciais são despertados, eles “mexem” com algo dentro de nós, como se nos reconhecéssemos naquela narrativa, no conflito daquele herói, nos desafios e conquistas da jornada.

Estudamos os mitos porque justamente eles nos dão pistas sobre a nossa psique, eles nos revelam. Eliade define: “O mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares. O mito conta com uma história sagrada (…). É esta irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é hoje (…). O mito é considerado uma história verdadeira, porque sempre se refere a realidades. A principal função do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas. Compreender as condutas míticas equivale a reconhecê-las como fenômenos humanos, fenômenos de cultura, criação do espírito.”

Para Jung, a sobrevivência dos mitos ao longo do tempo, sua vivacidade tão colada na experiência humana tem uma explicação: “É inevitável que os produtos do inconsciente coletivo, isto é, os quadros que de forma inequívoca acusam caráter mitológico, sejam alinhados dentro de seu contexto histórico-simbólico, pois constituem uma linguagem inata da psique e da sua estrutura, e de forma alguma são aquisições individuais no que se refere à sua forma básica”. Aqui, Jung nos conta sobre os arquétipos, que de forma muito ampla, são matrizes herdadas, que pertencem à toda humanidade, sem um conteúdo definido. O que definirá o conteúdo de cada arquétipo, para cada pessoa, serão suas experiências ao longo de sua história, na relação com o mundo, com o outro e consigo mesma.

Por esse motivo, o estudo do mito é tão importante para Psicologia, pois oferece uma compreensão da psique humana em sua totalidade conciente-inconsciente.

Vamos tomar como exemplo a Jornada do Herói. A estrutura dessa jornada nos aponta para muitas formas de compreender e elaborar a nossa própria jornada na vida. Empreendemos diversas vezes o ciclo da jornada do herói em nosso caminhar, e a cada vez que isso acontece, temos a oportunidade de ampliar a nosso autoconhecimento e autenticar nossos recursos internos no enfrentamento dos desafios diários.
Vejamos: o herói, filho de um Deus com um humano, é o guardião das transformações que ocorrem no contato com o desconhecido, com o perigo, o desafio. Diante disso, alguns padrões antigos e conhecidos se desmancham, dando lugar ao novo, a novas bases de segurança para a personalidade.
Quantas vezes nos percebemos enredados nessa estrutura? Algo que fazia sentido já não ocupa o mesmo lugar de importância, o que gera um desconforto que nos empurra para fora, para o perigo do desconhecido, em busca de algo que nos dê de volta a sensação de conforto, a sensação de que as coisas estão no lugar que deveriam estar. Nessa busca, enfrentamos inimigos (que às vezes podem ser nós mesmos), descobrimos nossos recursos (características que, até então, pensávamos não possuir) encontramos o nosso tesouro (poder pessoal, autoconfiança) e retornamos ao lar, mas agora, transformados pelas experiências vividas no caminho. Com certeza, muito mais preparados para as próximas aventuras que a vida nos oferecer.
Por isso, a jornada do herói é arquetípica e nos fala de trasnformação.
Quando aceitamos partir em função de um chamado, estamos nos colocando em uma posição de abertura para que a vida aconteça, pois vida é transformação, e a cada processo de transformação nos conectamos mais com a nossa essência, para aprendermos a ser quem realmente somos.

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