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mar 06

UMA POSSÍVEL COMPREENSÃO FENOMENOLÓGICA EXISTENCIAL DA CLÍNICA PSICOLÓGICA

Texto escrito por Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto (Doutora em Psicologia, Professora adjunta da Universidade Católica de Pernambuco vinculada ao Programa de Pós-graduação – Mestrado em Psicologia Clínica, coordenadora do LACLIFE- Laboratório de Psicologia Clínica Fenomenológica Existencial e pesquisadora do CNPq- integrante do Grupo de pesquisa em Psicologia Clínica)

 

Hoje compartilho um artigo muito interessante sobre a Psicologia Clínica na abordadem Fenomenológico-Existencial:

 

A intenção primordial deste ensaio é apresentar uma reflexão de como a Analítica Existencial de Heidegger poderia fecundar a clínica psicológica, aqui compreendida como espaço aberto, condição para emergência dos fenômenos clínicos na sua singularidade e força de apresentação, as quais, por sua vez, exigem modos correspondentes de acolhimento, interpretação e ação.

É importante ressaltar que não é nosso objetivo aplicar as concepções de Heidegger acerca do humano como um conhecimento sistemático do qual derivam modos e métodos de intervenção clínica. Trata-se, sobretudo, de deixar-se afetar pela mediação heideggeriana, de deixar-se encontrar com o pensamento heideggeriano como outra possibilidade de acolher e compreender a demanda clínica deixando-se afetar por ela e, a partir deste acolhimento, conceber possibilidades de como responder a ela.

Tal demanda perece suscitar um cuidado de si marca fundamental na Antiguidade, da experiência ética, gradativamente esquecida e silenciada pela modernidade, que, ao instituir uma outra ética, passa a enfatizar categorias de subjetivação e de tecnologias de si. Como resultado, deparamo-nos com a produção de práticas clínicas que, destacando a dimensão das técnicas, são marcadas pela filosofia do sujeito numa tradição metafísica. Nessa filosofia, segundo Birman (2000), a verdade do sujeito se inscreve na produção da subjetividade, concebida como a exigência de saber sobre si.

Partindo de tal compreensão, Birman (2000), levanta uma questão extremamente importante que incide sobre a constituição das práticas clínicas ao apontar para dois pólos constitutivos, o cuidado e o saber de si, como possibilidades diferentes de conceber e efetivar a ação clínica.

A clínica psicológica, ao assumir como pressuposto o cuidado de si, compromete-se em manter contato estreito com a experiência do cliente, renunciando as posturas de controle e de previsão do processo clínico. Para firmar essa posição clínica precisa efetivar a passagem do espaço psicológico atrelado à dimensão da ciência moderna – com projeto epistemológico regido por versões normativas e judicativas – para outro espaço de constituição da psicologia que enfatize a dimensão ética dos discursos e da prática psicológica.

Assim compreendida a clínica vincula-se à linguagem como possibilidade de levar algo à luz, trazer algo para a des-ocultação. Nesse processo, a linguagem é desvinculada da noção de instrumento complexo de representação de objetos por parte de um sujeito, apoiada no pressuposto de que os sujeitos e suas experiências preexistem a qualquer articulação da linguagem. Com Heidegger(1989) e Gadamer(1997), a linguagem é tomada como meio universal de experiência, compreensão ancorada no entendimento heideggeriano de linguagem – ato de nomear -, a qual pode instalar o ente na clareira do ser e abrir para ele o que aparece como imprecisão e inquietação, já que, originalmente, dizer significa “mostrar”. Diante de tal perspectiva, a linguagem apresenta-se como meio onde estamos imersos, constituímo-nos e onde os objetos de nossa experiência se constituem.

Nesse contexto, a linguagem refere-se à língua – meio no qual estamos imersos e nos constituímos -, pois não existimos, senão no-mundo e na-língua. O mundo-língua, na situação clínica, não tem dimensão regulativa, mas sim constitutiva, e transita pela dimensão poética da fala, suscitando distinção entre a fala do cotidiano e a fala poética. A primeira nutre-se do “impessoal”, no qual se vive a maior parte do tempo como abrigo para exorcizar a angústia e fugir da inóspita responsabilidade de encarregar-se de sua própria decisão e mistério. A segunda, fala poética (poiesis), abre-se como disponibilidade para a escuta do que não está plenamente disponível, des-velado; solta a linguagem para a aventura de des-cobrir e recriar o sempre novo de si e do mundo.

Essa linguagem busca encontrar o interlocutor em seu espaço de liberdade: “quando me expresso poeticamente, o outro não é obrigado a concordar comigo […] no entanto, tenho uma grande expectativa de que ele possa me compreender, dentro da não-necessidade de compreender” (POMPÉIA, 2004, p. 158). Configura-se, assim, o acontecer clínico por meio da linguagem da poiesis. Nesse âmbito da linguagem, a compreensão acontece no diálogo, via afetação e disponibilização, o qual exige co-respondência, consenso hermenêutico e ação.

Tal compreensão, ao superar a hegemonia do pensamento representacional e a noção de verdade como adequação e correspondência, remete ao entendimento de linguagem desvinculada da noção de instrumento complexo de representação de objetos, apoiada no pressuposto de que os sujeitos e suas experiências preexistem a qualquer articulação da linguagem e remete à dimensão hermenêutica da linguagem.

De acordo com Váttimo (1996, pp.143-144), “ao pensamento da explicação, Heidegger opõe agora o pensamento hermenêutico como escuta da linguagem na sua essência poética (isto é, toda a linguagem na sua força de abertura e fundação)”. Nessa perspectiva, a hermenêutica interpreta a palavra sem a esgotar, respeitando-a na sua natureza de permanente reserva. Assim, na situação clínica, o cliente se compreende, dá-se a compreender nessa relação, para si e para o terapeuta, abre-se para a experiência que deseja expressar e mantém a dimensão do não-dito como reserva permanente.

A recusa à explicitação total e o conseqüente esforço para construir uma hermenêutica da escuta levam o ato de falar e escutar à possibilidade de “pensar” a própria vida. Pensar, nessa situação, não se vincula ao pensamento que calcula: passa de oportunidade em oportunidade; faz cálculos com perspectivas sempre novas e mais econômicas; não reflete “sobre o sentido que reina em tudo que existe” (HEIDEGGER, 1959, p.13). Pensar, na clínica, aproxima-se da reflexão, no sentido heideggeriano de meditação, cujo significado não se restringe ao estar consciente de algo, mais vai além da consciência cartesiana, constitui-se como base para a atitude possível de “serenidade frente ao mistério”, na disponibilidade para o abandono àquilo que merece ser interrogado.

É esse pensar que carece de cuidados na situação clínica. Tal modo de pensar possibilita romper a armadura dentro da qual habitamos e que se tornou invisível pelo tempo – estrutura que preenche todos os lugares e não deixa espaço para ser eu-próprio singular. A ação clínica pode por em andamento o que já é próprio do humano, ajudando-o a “pró-curar” aquilo de que foge: a morada no sentido e o habitar des-cobrindo ele mesmo e o mundo, relançando-o na sua existência, a fim de que pense a própria vida.

Assim, a situação clínica começa ao se configurar como espaço privilegiado para libertar a fala e a ação submissa aos problemas herdados e ao consenso público. É constituída pelo dizer-escutar, permite o tematizar do sofrimento e o encaminhar do des-mascaramento do habitual. Pode levar à abdicação da “segurança da realidade” e encaminhar a pessoa-cliente para “saber” que habita na interpretação.

Em tal situação, a fala, ao ser vinculada ao ato de nomear, não está articulada à explicação ou à decifração; ao contrario, o nomear, ao dizer o que se mostra no oculto, pressupõe a pré-compreensão ou compreensão não tematizada que funda a interpretação, demandando resposta a algo que solicita.

Tal fala permite o vir-a-ser propriamente que, numa perspectiva heideggeriana, abre-se como um mistério a ir-se des-velando e constituindo aos poucos; dela nada sabemos antecipadamente e, como possibilidade projetada sempre para diante, é imodelável pelo presente. Assim, abre-se como possibilidade para os modos de ser-no-mundo se constituirem, libertando a palavra para o seu dizer outro, não-definível em conceitos ou idéias. Nesse outro dizer, “fenomenologicamente, ser faz sentido diante de se ser mesmo, de se estar existindo e não diante da conceituação” (Critelli,1996, p.127). A configuração mais tangível do apropriar-se do ser, para ser propriamente, passa pela decisão de projetar-se em direção de dar conta de ser, seguindo suas próprias possibilidades. Essa é sua liberdade, implicando um poder de querer ser si mesmo, assumir a possibilidade de ser realizador de cuidados.

Tal fala nos remete à questão da escuta: não é o eu que fala que precisa ser efetivamente escutado. A fim de prosseguir na direção da questão do que é escutar a fala mesma, é preciso compreender o sentido de experiência na concepção de Heidegger. Na dimensão heideggeriana, experiência consiste em ser “afetado” e “transformado” num encontro com o outro na sua alteridade, um acontecimento dramático que supõe o estar instalado num mundo como horizonte de encontros. Esse horizonte, ao mesmo tempo, abre-se para transformações e resiste e se opõe a qualquer captura pelo outro.

Aqui, mais uma vez, a “meditação heideggeriana” convida para um novo encontro com a clínica. Logo, torna-se necessária uma via de encontro que, ao passar pela fala e escuta, nos remeta à “relação” que se estabelece entre quem fala e quem escuta, circunscrevendo as diversas possibilidades de relação com o outro que busca ser acolhido no seu sofrimento – pode ser o cliente de um consultório psicoterápico ou de um hospital; um grupo de pessoas em atendimento psicológico ou um aluno/estagiário em supervisão; ou ainda uma mãe com seu filho ou uma equipe de profissionais de uma instituição. Tal relação permite o contato com a dimensão fenomenológica da experiência, que já inicia seu trânsito, mesmo em um sentido ainda não des-velado.

Nos atendimentos psicológicos a escuta atenta e o disponibilizar-se do psicólogo, mais do que as intervenções verbais de caráter explicativo/racional, se oferecem como “ente-à-mão”, que poderá ser assumido e usado de acordo com a singularidade de cada pessoa, na tentativa de cuidar do que precisa ser cuidado, a sua própria existência.

Essa compreensão de “cuidado” aponta para possibilidades de ressignificação da ação do psicólogo clínico que, ao assumir a clínica como modo ôntico possível próprio de cuidar, se preocupa com o acontecer do cliente. Nessa direção, a prática psicológica enquanto “ação pré-ocupada”, revela-se atenta ao modo de o cliente viver o seu cuidar, a sua existência, a sua história.

Cuidar, convém ressaltar, não pode ser considerado atividade específica das práticas psicológicas. Enquanto manifestação ôntica refere à configuração concreta do modo constitutivo da existência humana que se apresenta como “estrutura de cuidar”. Assim, a clínica como cuidado remete aos modos possíveis de cuidar num determinado tempo e numa determinada situação. Tal ação abre-se para a escuta de um falar de um existente que vai além de uma ação exercida num plano meramente teórico-científico e ou técnico e, ao contrário, exige conversão teórica no sentido de evitar qualquer tentação de “objetivação” da experiência, que funcionaria como paradigma prévio, muito eficaz, mas incapaz de manter-se na abertura à acontecência, portanto “cego” para o fenômeno na sua singularidade.

Nessa direção, “pré-ocupar-se com o outro é não substitui o outro no seu cuidar nem roubar o seu cuidar, mas antecipa-se a ele em seu poder-ser existencial, devolvendo o cuidar a ele. É pôr em claro a possibilidade de estabelecer outras formas de relação e habitar outros mundos, abrindo para o outro a possibilidade de liberdade onde o outro é deixado entregue ao seu poder. Atitude que afirma o cuidado como constituição ontológica do humano, já que “o homem não tem cuidado, é cuidado” (Almeida,1999:46).

Desse modo, a ação clínica busca propiciar ao cliente tornar-se narrador de si mesmo pela escuta atenta do psicólogo, que cuida do exercer de um dizer apropriado e encarnado. O psicólogo clínico atua comprometido com o significado-sentido, apontado na relação com o cliente, agora ouvinte. Tentando manter o transitar, abre a possibilidade para o cliente também se comprometer com a narrativa de sua própria história de vida e caminhar na passagem da vivencia para a experiência, assumindo-se explicitamente, como cuidado, ao vislumbrar um destino possível. Destinar-se é criar um sentido possível, respondendo ao destino.

Caberia, então, a relação clínica acolher o “sentido”, aqui compreendido como destinação, que se aloja nas tramas construídas no modo cotidiano de viver no mundo. O “sentido” nos remete para uma das dimensões de “cuidado”, implicando assumir que o homem existe, cuidando de existir. Nessa perspectiva, toma sob seu cuidado o que pertence a sua existência, o que remete para a maneira como somos “afetados” pelas coisas e ou pelos outros que estão aí, no mundo.

O homem existe lançado no mundo, na facticidade do cotidiano, enredado nas circunstâncias estruturais já interpeladas pelo público. Tem como tarefa, cuidar da própria existência que se apresenta como pura possibilidade e abertura ao ser. Assim, a possibilidade implica ser livre para o mais peculiar poder-ser: entre a responsabilidade de ser, o homem deve, permanentemente, abrir-se para suas possibilidades, dar-lhes sentido e escolhê-las de modo a encaminhar sua existência.

Como homem singular, o poder-ser é livre para modalizar, impropriamente, suas possibilidades cotidianamente como a-fim-dos-outros e também poder acolher criativamente, desde o mundo seu próprio destinar-se (sentido), suspenso em suas possibilidades, existindo a-fim-de-si-mesmo.

Portanto, a ação clínica assim compreendida rompe com o modo de contato construído numa concepção técnico/explicativa, constituindo-se numa disponibilidade para acompanhar o outro (cliente) em seu cuidar das suas possibilidades mais próprias, dispondo delas livremente e com responsabilidade.

Para Medard Boss (1997) a prática clínica pode ser compreendida como

“… o fato dela mesma ser livre e permitir aos homens tornarem-se livres dentro dela. Como psicoterapeutas queremos, no fundo, libertar nossos pacientes para si mesmos […] Com a libertação psicoterápica queremos levar nossos pacientes “apenas” a aceitar suas possibilidades de vida e dispor delas livremente e com responsabilidade” (1977:61, grifos do autor).

Nessa direção, precisa envolver-se com um procedimento co-humano criativo não apreensível por teorias que descendem do subjetivismo e do conceito cartesiano de homem e de seu mundo. Para se alcançar esta nova compreensão, é preciso dar um salto indispensável – do subjetivismo e psicologismo abstrato das ciências humanas, derivadas do pensamento moderno, para uma atitude de abertura ao mundo que ampara e guarda seu aparecimento. Tal salto rompe com as interpretações teóricas fundamentadas numa psicologia subjetivista e tecnicista e assume o modo de ver e conhecer fenomenológico, compreendido como as várias maneiras pelas quais algo se mostra, se desvela, se torna presente a nós (HEIDEGGER, 1989). Assume, também, a compreensão do existir humano, enquanto meras possibilidades de poder-apreender os sentidos daquilo que aparece e se lhe fala, através da maneira própria pela qual se mostra.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, F. M. Aconselhamento Psicológico numa visão fenomenológicoexistencial: cuidar de ser. In MORATO, H. T. P. Aconselhamento Psicológico Centrado na pessoa: novos desafios. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.

BIRMAN, J. Entre cuidado e saber de si: sobre Foulcault e a psicanálise. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.

BOSS, M. AngústiA, Culpa e Libertação: ensaios de psicanálise existencial. São Paulo: Duas Cidades, 1977.

CRITELLI, D. M. Analítica do Sentido: uma aproximação e interpretação do real de orientação fenomenológica. São Paulo: EDUC/ Brasiliense, 1996.

GADAMER, HANS-GEORG. Verdade e Método. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. HEIDEGGER, M. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 1959.

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 1989.

POMPEIA, J. A.; SAPIENZA, B. T. Na presença de sentido: uma aproximação fenomenológica a questões existenciais básicas. São Paulo: EDUC/ Paulus, 2004.

VÁTTIMO, G. Introdução a Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.

1 comentário

  1. Oração

    Obrigado por compartilhar! Excelente artigo.

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