Texto escrito por Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto (Doutora em Psicologia, Professora adjunta da Universidade Católica de Pernambuco vinculada ao Programa de Pós-graduação – Mestrado em Psicologia Clínica, coordenadora do LACLIFE- Laboratório de Psicologia Clínica Fenomenológica Existencial e pesquisadora do CNPq- integrante do Grupo de pesquisa em Psicologia Clínica)
Hoje compartilho um artigo muito interessante sobre a Psicologia Clínica na abordadem Fenomenológico-Existencial:
A intenção primordial deste ensaio é apresentar uma reflexão de como a Analítica Existencial de Heidegger poderia fecundar a clínica psicológica, aqui compreendida como espaço aberto, condição para emergência dos fenômenos clínicos na sua singularidade e força de apresentação, as quais, por sua vez, exigem modos correspondentes de acolhimento, interpretação e ação.
É importante ressaltar que não é nosso objetivo aplicar as concepções de Heidegger acerca do humano como um conhecimento sistemático do qual derivam modos e métodos de intervenção clínica. Trata-se, sobretudo, de deixar-se afetar pela mediação heideggeriana, de deixar-se encontrar com o pensamento heideggeriano como outra possibilidade de acolher e compreender a demanda clínica deixando-se afetar por ela e, a partir deste acolhimento, conceber possibilidades de como responder a ela.
Tal demanda perece suscitar um cuidado de si marca fundamental na Antiguidade, da experiência ética, gradativamente esquecida e silenciada pela modernidade, que, ao instituir uma outra ética, passa a enfatizar categorias de subjetivação e de tecnologias de si. Como resultado, deparamo-nos com a produção de práticas clínicas que, destacando a dimensão das técnicas, são marcadas pela filosofia do sujeito numa tradição metafísica. Nessa filosofia, segundo Birman (2000), a verdade do sujeito se inscreve na produção da subjetividade, concebida como a exigência de saber sobre si.
Partindo de tal compreensão, Birman (2000), levanta uma questão extremamente importante que incide sobre a constituição das práticas clínicas ao apontar para dois pólos constitutivos, o cuidado e o saber de si, como possibilidades diferentes de conceber e efetivar a ação clínica.
A clínica psicológica, ao assumir como pressuposto o cuidado de si, compromete-se em manter contato estreito com a experiência do cliente, renunciando as posturas de controle e de previsão do processo clínico. Para firmar essa posição clínica precisa efetivar a passagem do espaço psicológico atrelado à dimensão da ciência moderna – com projeto epistemológico regido por versões normativas e judicativas – para outro espaço de constituição da psicologia que enfatize a dimensão ética dos discursos e da prática psicológica.
Assim compreendida a clínica vincula-se à linguagem como possibilidade de levar algo à luz, trazer algo para a des-ocultação. Nesse processo, a linguagem é desvinculada da noção de instrumento complexo de representação de objetos por parte de um sujeito, apoiada no pressuposto de que os sujeitos e suas experiências preexistem a qualquer articulação da linguagem. Com Heidegger(1989) e Gadamer(1997), a linguagem é tomada como meio universal de experiência, compreensão ancorada no entendimento heideggeriano de linguagem – ato de nomear -, a qual pode instalar o ente na clareira do ser e abrir para ele o que aparece como imprecisão e inquietação, já que, originalmente, dizer significa “mostrar”. Diante de tal perspectiva, a linguagem apresenta-se como meio onde estamos imersos, constituímo-nos e onde os objetos de nossa experiência se constituem.
Nesse contexto, a linguagem refere-se à língua – meio no qual estamos imersos e nos constituímos -, pois não existimos, senão no-mundo e na-língua. O mundo-língua, na situação clínica, não tem dimensão regulativa, mas sim constitutiva, e transita pela dimensão poética da fala, suscitando distinção entre a fala do cotidiano e a fala poética. A primeira nutre-se do “impessoal”, no qual se vive a maior parte do tempo como abrigo para exorcizar a angústia e fugir da inóspita responsabilidade de encarregar-se de sua própria decisão e mistério. A segunda, fala poética (poiesis), abre-se como disponibilidade para a escuta do que não está plenamente disponível, des-velado; solta a linguagem para a aventura de des-cobrir e recriar o sempre novo de si e do mundo.
Essa linguagem busca encontrar o interlocutor em seu espaço de liberdade: “quando me expresso poeticamente, o outro não é obrigado a concordar comigo […] no entanto, tenho uma grande expectativa de que ele possa me compreender, dentro da não-necessidade de compreender” (POMPÉIA, 2004, p. 158). Configura-se, assim, o acontecer clínico por meio da linguagem da poiesis. Nesse âmbito da linguagem, a compreensão acontece no diálogo, via afetação e disponibilização, o qual exige co-respondência, consenso hermenêutico e ação.
Tal compreensão, ao superar a hegemonia do pensamento representacional e a noção de verdade como adequação e correspondência, remete ao entendimento de linguagem desvinculada da noção de instrumento complexo de representação de objetos, apoiada no pressuposto de que os sujeitos e suas experiências preexistem a qualquer articulação da linguagem e remete à dimensão hermenêutica da linguagem.
De acordo com Váttimo (1996, pp.143-144), “ao pensamento da explicação, Heidegger opõe agora o pensamento hermenêutico como escuta da linguagem na sua essência poética (isto é, toda a linguagem na sua força de abertura e fundação)”. Nessa perspectiva, a hermenêutica interpreta a palavra sem a esgotar, respeitando-a na sua natureza de permanente reserva. Assim, na situação clínica, o cliente se compreende, dá-se a compreender nessa relação, para si e para o terapeuta, abre-se para a experiência que deseja expressar e mantém a dimensão do não-dito como reserva permanente.
A recusa à explicitação total e o conseqüente esforço para construir uma hermenêutica da escuta levam o ato de falar e escutar à possibilidade de “pensar” a própria vida. Pensar, nessa situação, não se vincula ao pensamento que calcula: passa de oportunidade em oportunidade; faz cálculos com perspectivas sempre novas e mais econômicas; não reflete “sobre o sentido que reina em tudo que existe” (HEIDEGGER, 1959, p.13). Pensar, na clínica, aproxima-se da reflexão, no sentido heideggeriano de meditação, cujo significado não se restringe ao estar consciente de algo, mais vai além da consciência cartesiana, constitui-se como base para a atitude possível de “serenidade frente ao mistério”, na disponibilidade para o abandono àquilo que merece ser interrogado.
É esse pensar que carece de cuidados na situação clínica. Tal modo de pensar possibilita romper a armadura dentro da qual habitamos e que se tornou invisível pelo tempo – estrutura que preenche todos os lugares e não deixa espaço para ser eu-próprio singular. A ação clínica pode por em andamento o que já é próprio do humano, ajudando-o a “pró-curar” aquilo de que foge: a morada no sentido e o habitar des-cobrindo ele mesmo e o mundo, relançando-o na sua existência, a fim de que pense a própria vida.
Assim, a situação clínica começa ao se configurar como espaço privilegiado para libertar a fala e a ação submissa aos problemas herdados e ao consenso público. É constituída pelo dizer-escutar, permite o tematizar do sofrimento e o encaminhar do des-mascaramento do habitual. Pode levar à abdicação da “segurança da realidade” e encaminhar a pessoa-cliente para “saber” que habita na interpretação.
Em tal situação, a fala, ao ser vinculada ao ato de nomear, não está articulada à explicação ou à decifração; ao contrario, o nomear, ao dizer o que se mostra no oculto, pressupõe a pré-compreensão ou compreensão não tematizada que funda a interpretação, demandando resposta a algo que solicita.
Tal fala permite o vir-a-ser propriamente que, numa perspectiva heideggeriana, abre-se como um mistério a ir-se des-velando e constituindo aos poucos; dela nada sabemos antecipadamente e, como possibilidade projetada sempre para diante, é imodelável pelo presente. Assim, abre-se como possibilidade para os modos de ser-no-mundo se constituirem, libertando a palavra para o seu dizer outro, não-definível em conceitos ou idéias. Nesse outro dizer, “fenomenologicamente, ser faz sentido diante de se ser mesmo, de se estar existindo e não diante da conceituação” (Critelli,1996, p.127). A configuração mais tangível do apropriar-se do ser, para ser propriamente, passa pela decisão de projetar-se em direção de dar conta de ser, seguindo suas próprias possibilidades. Essa é sua liberdade, implicando um poder de querer ser si mesmo, assumir a possibilidade de ser realizador de cuidados.
Tal fala nos remete à questão da escuta: não é o eu que fala que precisa ser efetivamente escutado. A fim de prosseguir na direção da questão do que é escutar a fala mesma, é preciso compreender o sentido de experiência na concepção de Heidegger. Na dimensão heideggeriana, experiência consiste em ser “afetado” e “transformado” num encontro com o outro na sua alteridade, um acontecimento dramático que supõe o estar instalado num mundo como horizonte de encontros. Esse horizonte, ao mesmo tempo, abre-se para transformações e resiste e se opõe a qualquer captura pelo outro.
Aqui, mais uma vez, a “meditação heideggeriana” convida para um novo encontro com a clínica. Logo, torna-se necessária uma via de encontro que, ao passar pela fala e escuta, nos remeta à “relação” que se estabelece entre quem fala e quem escuta, circunscrevendo as diversas possibilidades de relação com o outro que busca ser acolhido no seu sofrimento – pode ser o cliente de um consultório psicoterápico ou de um hospital; um grupo de pessoas em atendimento psicológico ou um aluno/estagiário em supervisão; ou ainda uma mãe com seu filho ou uma equipe de profissionais de uma instituição. Tal relação permite o contato com a dimensão fenomenológica da experiência, que já inicia seu trânsito, mesmo em um sentido ainda não des-velado.
Nos atendimentos psicológicos a escuta atenta e o disponibilizar-se do psicólogo, mais do que as intervenções verbais de caráter explicativo/racional, se oferecem como “ente-à-mão”, que poderá ser assumido e usado de acordo com a singularidade de cada pessoa, na tentativa de cuidar do que precisa ser cuidado, a sua própria existência.
Essa compreensão de “cuidado” aponta para possibilidades de ressignificação da ação do psicólogo clínico que, ao assumir a clínica como modo ôntico possível próprio de cuidar, se preocupa com o acontecer do cliente. Nessa direção, a prática psicológica enquanto “ação pré-ocupada”, revela-se atenta ao modo de o cliente viver o seu cuidar, a sua existência, a sua história.
Cuidar, convém ressaltar, não pode ser considerado atividade específica das práticas psicológicas. Enquanto manifestação ôntica refere à configuração concreta do modo constitutivo da existência humana que se apresenta como “estrutura de cuidar”. Assim, a clínica como cuidado remete aos modos possíveis de cuidar num determinado tempo e numa determinada situação. Tal ação abre-se para a escuta de um falar de um existente que vai além de uma ação exercida num plano meramente teórico-científico e ou técnico e, ao contrário, exige conversão teórica no sentido de evitar qualquer tentação de “objetivação” da experiência, que funcionaria como paradigma prévio, muito eficaz, mas incapaz de manter-se na abertura à acontecência, portanto “cego” para o fenômeno na sua singularidade.
Nessa direção, “pré-ocupar-se com o outro é não substitui o outro no seu cuidar nem roubar o seu cuidar, mas antecipa-se a ele em seu poder-ser existencial, devolvendo o cuidar a ele. É pôr em claro a possibilidade de estabelecer outras formas de relação e habitar outros mundos, abrindo para o outro a possibilidade de liberdade onde o outro é deixado entregue ao seu poder. Atitude que afirma o cuidado como constituição ontológica do humano, já que “o homem não tem cuidado, é cuidado” (Almeida,1999:46).
Desse modo, a ação clínica busca propiciar ao cliente tornar-se narrador de si mesmo pela escuta atenta do psicólogo, que cuida do exercer de um dizer apropriado e encarnado. O psicólogo clínico atua comprometido com o significado-sentido, apontado na relação com o cliente, agora ouvinte. Tentando manter o transitar, abre a possibilidade para o cliente também se comprometer com a narrativa de sua própria história de vida e caminhar na passagem da vivencia para a experiência, assumindo-se explicitamente, como cuidado, ao vislumbrar um destino possível. Destinar-se é criar um sentido possível, respondendo ao destino.
Caberia, então, a relação clínica acolher o “sentido”, aqui compreendido como destinação, que se aloja nas tramas construídas no modo cotidiano de viver no mundo. O “sentido” nos remete para uma das dimensões de “cuidado”, implicando assumir que o homem existe, cuidando de existir. Nessa perspectiva, toma sob seu cuidado o que pertence a sua existência, o que remete para a maneira como somos “afetados” pelas coisas e ou pelos outros que estão aí, no mundo.
O homem existe lançado no mundo, na facticidade do cotidiano, enredado nas circunstâncias estruturais já interpeladas pelo público. Tem como tarefa, cuidar da própria existência que se apresenta como pura possibilidade e abertura ao ser. Assim, a possibilidade implica ser livre para o mais peculiar poder-ser: entre a responsabilidade de ser, o homem deve, permanentemente, abrir-se para suas possibilidades, dar-lhes sentido e escolhê-las de modo a encaminhar sua existência.
Como homem singular, o poder-ser é livre para modalizar, impropriamente, suas possibilidades cotidianamente como a-fim-dos-outros e também poder acolher criativamente, desde o mundo seu próprio destinar-se (sentido), suspenso em suas possibilidades, existindo a-fim-de-si-mesmo.
Portanto, a ação clínica assim compreendida rompe com o modo de contato construído numa concepção técnico/explicativa, constituindo-se numa disponibilidade para acompanhar o outro (cliente) em seu cuidar das suas possibilidades mais próprias, dispondo delas livremente e com responsabilidade.
Para Medard Boss (1997) a prática clínica pode ser compreendida como
“… o fato dela mesma ser livre e permitir aos homens tornarem-se livres dentro dela. Como psicoterapeutas queremos, no fundo, libertar nossos pacientes para si mesmos […] Com a libertação psicoterápica queremos levar nossos pacientes “apenas” a aceitar suas possibilidades de vida e dispor delas livremente e com responsabilidade” (1977:61, grifos do autor).
Nessa direção, precisa envolver-se com um procedimento co-humano criativo não apreensível por teorias que descendem do subjetivismo e do conceito cartesiano de homem e de seu mundo. Para se alcançar esta nova compreensão, é preciso dar um salto indispensável – do subjetivismo e psicologismo abstrato das ciências humanas, derivadas do pensamento moderno, para uma atitude de abertura ao mundo que ampara e guarda seu aparecimento. Tal salto rompe com as interpretações teóricas fundamentadas numa psicologia subjetivista e tecnicista e assume o modo de ver e conhecer fenomenológico, compreendido como as várias maneiras pelas quais algo se mostra, se desvela, se torna presente a nós (HEIDEGGER, 1989). Assume, também, a compreensão do existir humano, enquanto meras possibilidades de poder-apreender os sentidos daquilo que aparece e se lhe fala, através da maneira própria pela qual se mostra.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, F. M. Aconselhamento Psicológico numa visão fenomenológicoexistencial: cuidar de ser. In MORATO, H. T. P. Aconselhamento Psicológico Centrado na pessoa: novos desafios. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.
BIRMAN, J. Entre cuidado e saber de si: sobre Foulcault e a psicanálise. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
BOSS, M. AngústiA, Culpa e Libertação: ensaios de psicanálise existencial. São Paulo: Duas Cidades, 1977.
CRITELLI, D. M. Analítica do Sentido: uma aproximação e interpretação do real de orientação fenomenológica. São Paulo: EDUC/ Brasiliense, 1996.
GADAMER, HANS-GEORG. Verdade e Método. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. HEIDEGGER, M. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 1959.
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 1989.
POMPEIA, J. A.; SAPIENZA, B. T. Na presença de sentido: uma aproximação fenomenológica a questões existenciais básicas. São Paulo: EDUC/ Paulus, 2004.
VÁTTIMO, G. Introdução a Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.
1 comentário
Oração
27 de março de 2019 às 10:49 (UTC -3) Link para este comentário
Obrigado por compartilhar! Excelente artigo.