A questão da neutralidade do psicoterapeuta

 

 

Essa é um dos mais importantes aspectos para pensarmos nossa prática como terapeutas. Afirmo isso porque a terapia só acontece quando a relação cliente-profissional é estabelecida de forma a existir um vínculo positivo de ambos os lados. E como falar em neutralidade quando falamos em relação? A neutralidade idealizada, do profissional que faz “cara de paisagem”, que serve apenas como tela de projeção, não existe. O que existe é uma relação demarcada profissionalmente entre duas pessoas que compartilham sentimentos que lhe são comuns dentro de um tempo e espaço determinados, de caráter sigiloso, onde o profissional oferece uma escuta ativa e cuidadosa e o cliente expõe suas questões a fim de aproximar-se de si mesmo.

 

E essa relação vai sendo construído a cada sessão, a cada encontro. Por isso, não é possível planejar uma sessão e chegar com algo pronto para oferecer ao cliente, pois é preciso entrar em contato com a pessoa e perceber o que ela tem para falar naquele dia, como ela está, quais são as suas demandas para aquela sessão. Seguindo esse raciocínio, também é importante que o terapeuta se perceba, que ele possa nomear como está naquele dia, qual a sua disponibilidade, qual o seu ritmo. E aqui, duas ideias aparecem: a importância de o profissional estar sempre trabalhando as suas próprias questões – através de sua terapia pessoal, em supervisão – e como é um engodo pensar na neutralidade do terapeuta!

 

A neutralidade é uma abstração impraticável na relação com o outro, inclusive quando essa relação se configura profissionalmente. Com isso não estou dizendo que não precisamos ter o cuidado de estabelecer limites e pontuar o nosso papel, não é isso! Mas que a neutralidade dependerá de diversos fatores, como por exemplo, o contexto no qual esse terapeuta está vivendo.

 

A proposta do terapeuta é oferecer a escuta e o acolhimento daquilo que o cliente está trazendo e buscar a compreensão junto a ele, sem que nossos próprios conteúdos emerjam e se misturem com o que é do outro. Mas ao mesmo tempo eu não posso impedir que alguns desses conteúdos próprios surjam, caso contrário não seria eu, psicoterapeuta Anna Paula, mas outra pessoa.

 

A neutralidade deve ser configurada como a responsabilidade do terapeuta de ocupar o seu papel profissional e cuidar dessa postura, se trabalhar, se respeitar. Em determinados momentos algo que é do terapeuta pode surgir e ele tem que trabalhar isso. Não com o cliente, ali na sessão, mas ele terá que se trabalhar em sua terapia pessoal, por exemplo. E quando nós conseguimos nos entender, fica mais fácil entender o outro. Se eu me respeito, também consigo respeitar o outro.

 

É interessante notar que essa discussão nos encaminha para outro ponto também bem polêmico dentro da Psicologia que é o fato do terapeuta ter que abdicar da onipotência, e saber que ele tem limites que precisam ser nomeados e trabalhados. Infelizmente, sabemos que muitos psicólogos assumem esse papel de “ter as respostas” e esse será outro ponto a ser discutido em outro texto. Agora, basta pontuar que quando o terapeuta se percebe em sua humanidade, ele pode trabalhar a relação com o cliente de uma forma que também cuide dele. Como estou atendendo? Estou mais vulnerável a que questões? Estou bem quanto a isso? Estou triste? Podendo cuidar de mim, junto com o outro, dentro dessa percepção, é possível fazer um bom trabalho.

 

Quando o terapeuta tem um cuidado pessoal com sua própria história, com suas feridas, em alguns momentos em que o cliente abre um tema que toca nas suas feridas, ele (terapeuta) vai sentir sim, mas ele estará percebendo, ele estará observando e ao mesmo tempo o eu-terapeuta estará ali, ocupando o seu papel e fazendo o seu trabalho.

 

Refletir, discutir, falar sobre esse tema é muito precioso, pois a representação social da Psicologia é muito forte no sentido do saber que é mágico – o psicólogo sabe tudo e tem que explicar tudo. Mas o psicólogo precisa se trabalhar, descobrir como é o meu estar com o outro, quais são as suas possibilidades, qual a sua disponibilidade, como anda a sua onipotência.

 

A fenomenologia também nos ajuda muito nesse sentido, ao organizar o que é meu e o que é do outro. Essa reflexão contínua é tão importante porque ela não nos deixa cristalizar em uma atitude onipotente frente ao outro. Essa reflexão é um elemento de trabalho que nos sustenta, nos permite ver o outro, pessoa ali na minha frente, e saber que o que ele pode eu também posso, o que ele não pode talvez eu também não possa e aí eu preciso entender isso na minha terapia, com meus amigos, com minha família, comigo mesma.

 

A proposta do encontro terapêutico é o cuidado com o outro e aí temos que, nesse cuidado, o outro é figura e o terapeuta é o fundo, mas ele está ali, o fundo existe. É importante que se tenha uma atitude congruente, pois como vou apontar para o outro a importância do cuidado se ele vê que eu mesma não exerço esse cuidado na minha vida? E como ele vê? Bom, eu não uso apenas o verbal para me expressar – tem todo o comportamento não verbal, a sua apresentação, a organização do seu espaço, como você cuida das suas coisas, enfim… o cliente fica atento a esses detalhes também e quando eles destoam, quando há uma incongruência entre o que se fala e como se fala e o que se mostra, uma quebra acontece, um incomodo se instala. Espera-se que o terapeuta ofereça acolhimento ao cliente e que esse possa sentir-se seguro para construir uma relação de confiança. Mas como é possível isso acontecer se há incongruência, incoerência?

 

Por todos esses aspectos, podemos perceber a complexidade do tema, ao mesmo tempo que podemos afirmar que essa troca que se dá na relação terapêutica é muito forte, muito íntima e muito linda!

 

Não podemos perder de vista, nunca, que somos nosso próprio instrumento de trabalho e aí entra a nossa humanidade, nossa impotência e como psicoterapeutas, usando um termo da Arteterapia, realizamos um “ajustamento criativo” em cada situação vivida com nosso cliente. Precisamos estar atentos ao processo de “auto regulação” para dar conta das vivência com o outro, porque nós vivemos relação Eu-Tu (segundo Buber) e como é importante o contato com o limite, com a possibilidade, com a disponibilidade  e com a indisponibilidade. O terapeuta deve estar atento ao seu suporte físico, e levar em conta o limite do meu corpo – estou saindo de um processo de adoecimento, estou com cólica… principalmente quando trabalhamos com crianças e adolescentes. Se você não estiver atenta a esses pontos, você não conseguirá estar inteira na sessão com o seu cliente.

 

Como terapeutas, não devemos olhar só para o cliente, precisamos olhar para nos mesmos e principalmente para a relação, que é uma coreografia que vai se dando de forma singular em cada atendimento. Se você está presente no contato com o outro, se sente realmente inteira, muitas vezes sensações que surgem, imagens que vem de repente tem a ver com o universo do outro também, é um campo de troca que vai se criando e o que aparece nessa relação não vem à toa, pois é sempre uma troca, por isso que em Gestalt se fala que o terapeuta é o melhor instrumento de trabalho, é seu próprio instrumento de trabalho. As nossas sensações, nossos sentimentos, dizem algo sobre o outro também.

 

Então, como terapeutas, vamos nos aproximar do outro sem tantos medos, tantas defesas… é claro que o outro desperta em mim sensações e sentimentos, e isso é tão verdadeiro e tão ameaçador, que foi preciso teorizar esse fenômeno, dando-lhe o nome de relações transferênciais, transferência, contratransferência… enfim, essas relações não precisam ser teorizadas e sim respeitadas nesse contato com o nosso paciente e conosco (pessoal e profissionalmente) se quisermos, como psicólogos, desenvolver o nosso trabalho.