Autenticidade e inautenticidade na perspectiva heideggeriana

 

 

De que modo nos relacionamos com as pessoas e com o mundo? Como lidamos com nossos sonhos, nossos sentimentos? Qual é o sentido da nossa vida? Como nos apropriamos daquilo que nos é dado enquanto oportunidades que, ao serem acolhidas, constroem a nossa história?

Vivemos nosso cotidiano de modo concreto, factual, ou seja, os acontecimentos do dia-a-dia nos envolvem, nos afetam, e é a partir daí que experimentamos a riqueza de estarmos vivos em uma trama de relacionamentos interpessoais que constituem nosso mundo significativo. Segundo Heidegger, somos ser-no-mundo, e isso não significa dizer que o homem está dentro do mundo, mas sim que mundo e homem co-existem, necessariamente. Não existe mundo sem homem e vice-versa. Essa forma de pensar difere radicalmente do pensamento metafísico, proposto desde Platão e que sustenta uma leitura de mundo dividido – mundo dentro da caverna & mundo fora da caverna (fazendo referência ao Mito da Caverna de Platão), mundo sensível & mundo suprassensível, realidade interna & realidade externa.

Ser-no-mundo é um traço fundamental do humano. Nessa trama existencial, o homem se manifesta, fala, faz escolhas, renuncia, foge, encontra, se angustia. A identidade do homem é a sua própria história que está em constante construção, e só podemos atribuir um fim a essa construção no dia em que esse homem morre.

Mas nos enganamos ao supor que cada um pode viver com clareza e autenticidade todos os momentos dessa história que somos nós! Faz parte do movimento da vida ligarmos o piloto automático e nos acomodar a um roteiro social previamente escrito. Assim, buscamos a proteção do impessoal, pois ao fazermos coisas que todos fazem nos sentimos pertencendo a um grupo, a uma comunidade, e isso é extremamente confortante.

A isso, Heidegger chamou de existência imprópria ou inautêntica. O interessante é perceber que não há um tom de recriminação nessa forma de viver. Segundo o pensador, essa é simplesmente a maneira como a existência nos é dada. Esse é o modo constitutivo de ser da nossa condição humana. E podemos arriscar a dizer que a maioria das pessoas não conhecerá outra forma de viver, que não essa da inautenticidade. Elas seguirão os padrões impostos socialmente, farão escolhas pautadas nessas referências, farão um esforço para não destoarem do grupo, e ainda assim não podemos menosprezar essa forma de viver, afinal é uma existência possível – sem muitas surpresas, numa linearidade previsível.

Porém, há outras possibilidades de existência, como por exemplo, a existência própria ou autêntica, na qual o homem impunha sua escolha de forma pessoal, enraizada em seu modo de ser, na sua compreensão e na acolhida do sentido daquilo que se mostra em sua existência.

É preciso dizer que uma existência autêntica não é conquistada de forma definitiva, ou seja, uma vez que o homem experimenta a autenticidade terá a garantia de que esse momento o acompanhará para sempre. Capítulos de autenticidade dentro de uma história de inautenticidade. Vivemos momentos de clareza, de maior familiaridade consigo mesmo, de descobertas importantes que nos levam a escolhas significativas, repletas de sentido. Momentos de plenitude, de compreensão, de acolhimento.

E o que promove ou impulsiona essa passagem – da inautenticidade para a autenticidade?

Heidegger vai dizer que essa transformação pode acontecer quando o homem começa a ceder aos apelos daquilo que é constitutivo em seu modo de ser. Quando, diante de uma desilusão, de um esvaziamento de sentido, o homem se angustia, quando se depara com uma limitação imposta por uma situação vivida de forma inesperada – a perda de um emprego, a frustração de um sonho, a morte de um ente querido. Diante de situações como essas, o homem sente que nenhuma resposta prévia pode dar conta da dor que está sentindo, que nada pode aplacar a sua angustia de ter que continuar sendo, apesar de. E é justamente isso que ele precisa fazer – se apropriar da tarefa de “ter que ser”. E ele só consegue realizar essa tarefa, a de ser ele mesmo em cada caso, quando cuida de sua existência e se apropria de suas escolhas.

Essas situações que desabrigam o homem do conforto do impessoal nos falam de sua condição finita: somos lançados em um mundo que não escolhemos, porém somos convocados a fazer escolhas e assumirmos a responsabilidade por elas, mesmo sem ter a garantia de que a escolha feita é a que nos levará ao lugar desejado, esperado.

E qual é a situação que melhor representa essa condição de finitude na vida do homem?

É o nosso próprio morrer. Talvez seja essa condição a fonte de toda angústia que leva o homem a buscar o refúgio na superficialidade do cotidiano, no anonimato, como forma de fugir da única certeza dessa vida: a possibilidade do próprio morrer.

Percebemos que o homem lida com a morte de maneira cada vez mais impessoal, reduzindo a angústia diante da finitude em um medo da extinção biológica. A maneira de vivenciarmos a morte, o luto, também se dá de forma distanciada, para que seus efeitos não sejam sentidos de modo tão avassalador por cada um de nós. Para exemplificarmos isso basta compararmos como as gerações anteriores lidavam com o morrer e como isso acontece nos dias atuais. Antes, a morte era vivida no seio da família, o morto era velado em casa. Hoje, temos a tecnologia intermediando esse processo, e favorecendo esse distanciamento cada vez maior de uma realidade que inevitavelmente será vivida por cada homem.

É na possibilidade de enfrentar essa angústia primordial, a da finitude, que o homem pode entender o morrer como um fenômeno da vida, que ensina “o lado autêntico e positivo da finitude de nossa existência, com a qual aprendemos o sentido de nossa singularidade, a tomar sobre nós mesmos a proximidade de nosso nada e o potencial sempre presente, porém dissimulado, do nosso não-ser. Mas, em última instância, aprendemos que, paradoxalmente, o nosso morrer é a expressão máxima de nossa liberdade, isto porque quando se superou a angústia da morte, se assumiu, em seu grau máximo, a finitude da vida e sob este aparente pessimismo, há algo de extremamente positivo e libertador capaz de mostrar a nossa vida sob um novo ângulo e brilho.” (J. C. Michelazzo, 2002)

Para finalizar essa reflexão, indico um filme e um texto que ilustram muito bem algumas dessas ideias, para ampliar o nosso olhar.

O filme chama-se “A Partida”. É um filme japonês, roteiro de Kundo Koyama e direção de Yôjirô Takita. Daigo (Masahiro Motoki) é um violoncelista que perde o emprego numa orquestra de Tóquio e decide voltar para o interior, ao lado da esposa, para a cidade onde cresceu. Lá, arruma um emprego que atrai o preconceito de muita gente: Daigo é encarregado de preparar os mortos para seus funerais.

Envergonhado, Daigo esconde sua nova profissão dos amigos e da mulher, que o abandonaram. No entanto, o trabalho de lavar, vestir e preparar os corpos para os parentes enlutados é algo nobre - tão nobre, que o filme explicita isso rapidamente, para que não haja tensão alguma ao longo da projeção.

A história mostra como acontecimentos mudam a vida das pessoas de forma radical. E o mais interessante: como não temos o poder de escolher todas essas mudanças. Podemos escolher algumas coisas sim, e precisamos nos responsabilizar por elas, mas em certos momentos somos atropelados por revelações e acontecimentos que transformam o colorido de todo um cenário conhecido, e nesse novo cenário, já não podemos ser os mesmos. A trama mostra a passagem de uma vida inautêntica para uma experiência de autenticidade. Mostra que essa passagem se dá em torno do contato do personagem com a morte e o morrer. Aos poucos, Daigo consegue fazer escolhas e construir uma nova compreensão de sua própria história. Ressignifica alguns acontecimentos passados, podendo viver de forma mais plena o seu presente, projetando novas possibilidades futuras.

Vale a pena assistir, um filme que aborda questões existenciais de forma singela e delicada.

Outra indicação que complementa a nossa reflexão é a leitura do texto escrito por Rubem Alves, chamado “A Morte como conselheira”. Este texto está no livro “Da morte”, organizado por R. M. S. Cassorla, publicado pela editora Papirus, em 1991. Para ler o texto, clique aqui.