Intencionalidade – ato de significar a vida

 

 

Um dos conceitos centrais que a Fenomenologia nos apresenta é o de intencionalidade. Neste pequeno texto vamos elucidar os motivos dessa importância e seus desdobramentos.

 

A Fenomenologia surge como uma nova forma de compreender o ser humano e o mundo que não apenas a partir do paradigma metafísico que separa sujeito e objeto em duas instâncias que estabelecem entre si uma relação causal. Essa nova compreensão que a Fenomenologia inaugura refere-se a conceber homem e mundo como unidade, sendo que um não pode existir sem o outro.

 

Falar isso não parece novidade quando pensamos na Psicossomática que propõe justamente um olhar mais amplo, holístico, que leve em consideração o homem em suas dimensões biológica, social, psicológica e espiritual. Colocando um olhar mais atento nessa questão, percebemos que mesmo nesse cenário o homem é inicialmente dividido e todo esforço gira em torno de devolver a esse homem uma unidade.

 

E aí surge a Fenomenologia dizendo que o homem não está dentro do mundo como uma coisa dentro da outra. Homem e mundo coexistem, necessariamente, a partir da intencionalidade da consciência. Um não é sem o outro. Não há nada, absolutamente nada, fora da unidade homem-mundo.

 

Diferente da ideia de consciência como sendo receptáculo de lembranças, pensamentos, memória, para Husserl – fundador da Fenomenologia – a consciência é sempre intencional, ou seja, está sempre voltada para um objeto, sendo que este objeto é sempre objeto para uma consciência. Podemos afirmar, então, que intencionalidade é o ato de significar o mundo a partir de uma singularidade.

 

Mundo está sendo utilizado nesse contexto como o conjunto de relações significativas que cada ser humano estabelece entre si, com os outros e com os acontecimentos vividos. Mundo é sempre realidade percebida, sentida, vivenciada da maneira própria de cada envolvido nessa dialética que compõe a vida.

Aqui já entramos no campo do Existencialismo, que nos oferece pressupostos filosóficos importantes para o nosso entendimento acerca do humano. Quem é o Homem, portanto?

 

Ele é um constante vir-a-ser, lançado nessa trama de relações significativas que compõe o mundo, tendo que lidar com as solicitações, os limites e as oportunidades que o mundo oferece. Podemos dizer que o homem é uma história que está acontecendo. Nessa história algumas coisas são determinadas pelo mundo, pela facticidade – o lugar que se nasce, a época em que se vive, a família na qual se chega. Outras tantas são escolhas feitas a partir de um entendimento próprio, de como cada um percebe a si mesmo, ao mundo e ao outro.

 

Essa é uma característica fundamental do ser humano: ser abertura que acolhe tudo aquilo que vem ao encontro, atribuindo significados que constroem a trama da vida, a trama de cada história. O que vem ao encontro dessa abertura são os acontecimentos que afetam esse homem ao longo de sua trajetória, impulsionando-o em direção às escolhas possíveis.

 

Nesse sentido podemos perceber que cada pessoa é uma história única. Esse é um dos grandes legados que o pensamento fenomenológico-existencial nos deixa – a liberdade de olhar para cada ser humano respeitando o que nele é mais precioso, ou seja, a sua história, a sua maneira de olhar o mundo, a maneira como cada um significa seus acontecimentos vividos.

 

E o interessante é que esses significados não são estáticos, eles podem mudar na medida em que novos acontecimentos são acolhidos na história da pessoa, contribuindo para uma compreensão mais ampla do vivido. Algo que em determinado momento era muito importante pode deixar de ser em outra fase, ideias podem perder o sentido, significados podem mudar de feição, aquela dor insuportável por uma decepção pode caminhar para um aprendizado rico e que tenha novos contornos significativos.

 

Essa fluidez é o que caracteriza o ser humano – fluxo de ideias, de sentimentos, de significados. Ao mesmo tempo em que nos dá uma sensação de liberdade muito boa (não precisamos ficar presos a nada para sempre!), também nos coloca diante da angústia de nos darmos conta que tudo muda o tempo todo!

 

O passado está determinado em termos de fatos ocorridos, mas nunca em relação aos significados que esses fatos ganham em cada momento da vida de uma pessoa. Essa possibilidade de ressignificar experiências vividas permite ao ser humano superar obstáculos que restringem o seu viver presente. Ninguém pode mudar o passado naquilo que ocorreu de fato, mas pode dar contornos mais saudáveis à própria história, de forma que o passado não seja arrastado como um peso que restrinja o presente. De certo modo, é isso que as pessoas buscam na terapia – desvelar novas possibilidades de ser no presente, ressignificando sua história e construindo um projeto de vida mais autêntico.

 

Viver, portanto, é estar lançado no presente, cercado de indeterminações, mas exercendo a liberdade de escolha que nos torna autores de nossa própria história.