set 10

O emprego do agora

 

 

 

Quem você é? Como se apresenta ao outro? Como responde isso olhando no espelho? Nas fichas frias cadastrais é preciso preencher o nome que te deram, o endereço que foi possível, a sua profissão. E se está em “recolocação” ou “desempregado”, quem você é? Um ser em transição é um não ser ou um vir a ser?

A angústia de olhar para dentro e refletir sobre essas questões tão existenciais é o motor para a ação. Mas afinal, qual a sua essência? Como responder a ela? Não é algo assim tão simples. Afinal, qual a relação entre a essência e a existência?

Esse pensamento filosófico é a base do Existencialismo, dos expoentes Martin Heidegger (1889 – 1976) e Jean Paul Sartre (1905 – 1980), originário no século passado e que se mantém atual. Os dois eram contemporâneos, mas não conviviam, sendo o primeiro alemão e o segundo francês.

Para os especialistas que tratam do tema, os estudos de ambos se complementam. Para esses autores, não existe uma essência humana, mas o que difere o ser humano dos demais seres é a consciência da finitude da vida. No contraponto, a criatividade, que também nos é única, vem permitindo nossa própria sobrevivência, adaptando o nosso modo de ser. Repare as formigas ou os elefantes – o que mudou na maneira como habitam o mundo em toda sua existência?

Sartre e Heidegger estão entre os nomes mais relevantes do Existencialismo (que trata do ser) Fenomenológico (relacionado ao como). Nessa abordagem, o ser é único e dono do seu destino.

Se você fosse sentar para tomar um café com esses dois grandes filósofos, eles não perguntariam “qual é o seu emprego de agora?” Mas sim: “qual o emprego que faz do seu agora?”. Você sempre estará na condição de algo, mas suas escolhas é que vão construindo a pessoa que você é.

A obra-prima de Heidegger, “Ser e Tempo” (1927), apresenta o instante como um constante porvir e ter sido, em sequências de agoras. Somos essa soma de possibilidades.

A temporalidade assume um sentido da cura, na constatação irrefutável da morte. O ser-no-mundo, como algo finito, traz a angústia que move à coragem para continuar, não preso ao passado, ou aguardando as oportunidades advindas de um futuro, mas se fazendo presente na construção do agora – o presente próprio, autêntico. Na concepção de Heidegger, a essência é a existência.

E somos livres às nossas escolhas. Sartre define que estamos condenados a sermos livres, porque, mesmo quando decidimos ficar presos a algo, isso já é uma escolha. Em seu livro, “O Ser e o Nada” (1943), descreve que não há como escapar da consciência. Para ele, somos responsáveis ao ponto de “quando eu escolho para mim, escolho para a humanidade inteira”.

Como seres inacabados, estamos em um processo de construção que só encerra com a morte. Antes de qualquer decisão, o que eu sou? Nada. Segundo Sartre, a existência precede a essência.

– Olá, sou uma cadeira, fui feita para sentar!
– E, eu, sou caderno, fui feito para escrever.

E você? Não foi feito assim. A escolha é sua. Inclusive do que fazer com a sua cadeira, se quiser usá-la como escada, e o seu caderno, se quiser fazer dele origami.

Mas não se trata apenas de olhar para si, para Sartre, é pelo olhar do outro que reconhecemos a nós mesmos. Por isso, define: “o inferno são os outros”. Embora isso não pareça confortável, já que perde-se parte da autonomia de fazer exatamente o que e como queremos, é a partir dos outros que reconhecemos as nossas fraquezas e também as forças. Essa troca, que desenha melhor a própria existência, complementa que somos únicos, mas não somos seres sozinhos.

 

Texto escrito por Arlete Rodrigues Vasconcelos – Jornalista, em constante ter sido e vir a ser

jan 05

Aqueles que ficaram

Sinopse:

Na Hungria, após o fim da Segunda Guerra Mundial, uma nação de sobreviventes do holocausto tenta se curar através do amor. Em meio ao conflito nacional e ao trauma, um médico de meia idade e uma jovem menina de luto por familiares perdidos em campos de concentração formam uma conexão e ajudam um ao outro a retomar suas vidas.

 

Reflexões…

Dois personagens tão diferentes e tão iguais.

Ele, médico, fechado, carrancudo ou triste(?), nos seus 40 e poucos anos.

Ela, uma garota de 16 anos, olhar decidido ou assustado (?), cheia de questionamentos, irreverente.

Uma dor os une – a dor da perda, da incerteza, da espera eterna, do horror.

Para aqueles que ficaram, a vida segue seu rumo. Mas como encontrar sentido, quando esse sentido é arrancado da vida de alguém de forma tão cruel? A resposta está na possibilidade das novas relações construídas, mesmo que a partir da dor, mas com a abertura para o afeto, a troca, a dança, a leveza e assim, uma nova chance de viver.

Para além do sofrimento, existe aquele momento de virada, de entender que a dor precisa ser acolhida, ter seu tempo, e depois ganhar novos contornos. Fica a marca, a lembrança, mas a dor vai cedendo espaço para que outras lembranças sejam registradas e componham a história de vida de cada um. O sorriso começa a aparecer, novos planos são traçados. Novas perspectivas, novas relações. E assim, no encontro com o outro, podemos encontrar novamente o prazer de viver.

 

 

jan 03

Operações Alquímicas – Solutio e a função Sentimento (texto 10)

Dando continuidade à série de textos sobre a relação entre as operações alquímicas e as funções psicológicas, propostas por Jung, falaremos agora sobre a Solutio, que corresponde ao elemento água, função psíquica sentimento e princípio arquetípico é Eros.

Nesse texto, trago um pouco a contribuição do pensamento taoísta (pensamento filosófico chinês), pois a água é um elemento importante para essa filosofia. Através da observação da natureza, os chineses criaram um sistema complexo de pensamento e modo de viver de forma que houvesse harmonia entre homem e natureza, ou seja, os taoístas viviam em harmonia com a mãe natureza.

A operação Solutio representa dissolução, significa dissolver algo. A água vai amaciar a terra. Estamos falando sobre transformação da matéria. Pensando simbolicamente, as sensações (elemento terra) que nos afeta devem ser complementadas pelos sentimentos (elemento água), e o sentimento é uma função de valoração, ou seja, preciso saber se eu gosto ou não de algo. Descobrir o que gostamos nem sempre é fácil… mas é fundamental, pois descobrir toda nossa potencialidade nos possibilita fazer as coisas de uma maneira melhor.  A função sentimento sendo utilizada de forma introvertida esclarece o que estamos sentindo. Portanto, a função sentimento é um processo psíquico destinado a elaborar nossas emoções, nossos afetos. Nos auxilia a lidar com nossos próprios sentimentos, e por isso é muito importante desenvolver essa função.

Identificar o sentimento presente, através da auto-observação, é o primeiro passo para elaborarmos uma situação, para que não fiquemos presos no lugar de vítimas dos próprios sentimentos.

Podemos perceber que em nossa sociedade os sentimentos são vistos de forma desvalorizada, pois se enfatiza o aspecto de “sentimentalismo”, o que é importante é ser racional, ser prático e objetivo, ser sentimental “não pega bem”. Porém, esse é um modo equivocado de entender e lidar com os sentimentos, pois não entrando em contato com os sentimentos, eles ficam inconscientes e dessa forma eles atuam enquanto sintomas, sem crivos, sem elaboração.

Somos confrontados, o tempo todo, com questões de valores, que exigem uma postura diante dessas questões. Tendo noção de como cada situação nos afeta, temos a possibilidade de elaborar esses afetos e entender quais são os nossos valores.

Quanto mais nos conhecemos, mais harmonicamente vivemos em relação ao nosso meio.

É importante ressaltar que a função sentimento é uma função racional, pois está pautada em regras próprias que promovem uma avaliação racional do mundo, a partir de seu valores. Não é instintiva, nem sensitiva e tampouco intelectual. É a razão do coração!

A função sentimento está ligada ao prazer e alegria de viver. Quem é pobre na função sentimento, não consegue usufruir da alegria de viver, e a felicidade está nas pequenas coisas, nas descobertas do cotidiano encontramos alegrias que nos alimenta, e nos fortalecem.

O elemento água, ligado á função sentimento, está relacionado ao dar e receber, que é a base do amor, Eros, da vida. Mas precisamos pensar na dinâmica das águas… o rio pode transbordar ou secar. O mar pode estar calmo ou se transformar em um tsunami. Assim é com os nossos sentimentos. Se uma pessoa entra em uma relação simbiótica, ela corre o risco de perder-se – pode se afogar dentro do outro, e em outras situações, pode perder-se dentro de si mesma.

Por isso, a importância de reconhecer e acolher nossos sentimentos, nomeá-los. Aqui, podemos perceber a importância de trabalharmos com as outras funções, para trazer equilíbrio quando a função sentimento estiver muito em desarmonia. Podemos trabalhar a função sensação, pela operação Coagulatio – força de Ego, centramento, levar a pessoa a enraizar-se em sua própria vida. E a função intuição, correspondente à operação Sublimatio (falaremos dela em um texto mais adiante) auxilia a pessoa a sair do pântano (água estagnada) e subir, ou seja, simbolicamente ver sua situação de forma mais ampla.

Segundo o Taoísmo, “a água segue o caminho mais fácil, a natureza não gasta energia à toa”. E o caminho mais fácil nem sempre é o mais curto. A água contorna a pedra. Como trazer essa flexibilidade para nosso dia a dia?

“Todo rio caminha para o mar”. Esse é o objetivo, e se ele tiver que dar várias voltas para chegar, ok, mas o rio nunca se desconecta de seu objetivo final. Quantas vezes perdemos conexão com aquilo que é importante para nós? E a função sentimento nos diz sobre aquilo que é mais importante para cada um, para não perder tempo com besteira. A função sentimento nos ajuda a discernir o que é importante em nossa vida.

Outro ponto que o pensamento taoísta nos oferece é o seguinte: “a água preenche todos os buracos, para continuar seguindo.” Quantas vezes entramos em depressão e acumulamos energia nesse buraco que nos escondemos, e ficamos parados, estagnados. O importante é entendermos o que está acontecendo, por que o mundo perdeu a graça? É preciso olhar para dentro, nomear os sentimentos e ter forças para continuar seguindo.

“Ao fluir, a água beneficia todas as coisas ao seu redor”. Deixar os sentimentos fluírem é trazer harmonia para nossa vida. E os sentimentos só podem fluir na medida em que os reconhecemos. Para manter esse fluxo, é importante praticar o desapego em algumas situações. É preciso liberar para ter fluidez. Apego significa estagnação. Apego a sentimentos, apego a relações, apego a situações, que já não fazem mais sentido, que precisam ser elaborados, para que se siga em frente. E também existe o apego a coisas boas, mas que ao fixarmos nessa situação, nos acomodamos e não abrimos espaço ao novo, ficamos na zona de conforto. Ter a função sentimento bem trabalhada ajuda a pessoa a passar por todas as situações.

E por fim, outro pensamento taoísta: “você passa, como passam as águas”. Esse pensamento nos traz a sensação de unicidade, sentimento de compaixão, sentimento que nos une a todos os outros seres do planeta.

Passaremos, agora, para os comentários de algumas imagens, para ilustrar o que foi dito acima.

Imagem 1 – Taj Mahal, Índia

Exemplo de algo grandioso que se constrói como forma de elaborar uma perda. O imperador Shah Jahan mandou construir esse monumento acima do túmulo de sua esposa, Aryumand Banu Begam e assim o Taj Mahal ficou conhecido como a maior prova de amor do mundo.

Imagem 2 – Ariadne dormindo

Através dessa escultura greco-romana, podemos sentir a fluidez (qualidade da água) nas formas da imagem, na roupa de Ariadne. Estar em paz com seus próprios sentimentos, poder relaxar, estar nesse estado permite a entrega. Podemos trabalhar a fluidez da água pelo relaxamento das articulações e relaxamento muscular.

Imagem 3 – O nascimento de Afrodite

Afrodite está saindo da água e temos novamente a fluidez das roupas, a simplicidade e a beleza da escultura nos remete a essa sensação de fluidez. A beleza nasce do sentimento, porque quando encontramos beleza em algo, despertamos amor por esse algo. Beleza e Amor estão juntos,

Imagem 4 – Papiro egípcio

A imagem mostra o julgamento da pessoa que morreu, para saber se ela vai ou não para o céu. De um lado da balança temos uma pena e do outro, o coração da pessoa. O coração tem que ser mais leve que a pena, caso contrário, não pode passar para o outro lado. Aqui já vemos a importância da elaboração dos sentimentos, para que o coração – sede dos sentimentos – possa ser leve, tenha leveza e fluidez. não podemos passar de um estágio para outro se não tivermos elaborado os nossos sentimentos.

Imagem 5 – Quadro do pintor alemão Menzel, século XIX

É um quadro que não tem nada de importante representado, mas conseguimos captar uma atmosfera de descanso, serenidade, paz, que os sentimentos bem trabalhados produzem essas atmosferas dentro de nós. Trabalhar os sentimentos significa produzir, com mais frequência, estados interiores harmoniosos, produzir esse clima de paz e tranquilidade.

Imagem 6 – Monet, pintor francês, séc XIX

Monet pintou muito bem as águas, a luz refletida nas águas, nos passando a sensação de serenidade, harmonia que brota, espontaneamente, das águas. Aspecto de harmonia com a natureza, por isso é tão agradável ver a obra desse pintor.

Imagem 7 – Renoir, pintor francês, séc. XIX

As Banhistas. “Perto de muita água, tudo é feliz” – frase de Guimarães Rosa, em “Grande sertões, veredas”.

Imagem 8 – Batismo pela água

Quadro simbólico. O batismo é um ritual simbólico que lava os seus pecados e faz você renascer. É como chegar de um dia de trabalho, e tomar um belo banho revigorante! Purificação, renascimento. Restauração dos sentimentos, através desse processo de se lavar e fazer a energia fluir novamente, O batismo é um ritual arquetípico, como mostrará a próxima imagem.

Imagem 9 – Varanasi, cidade sagrada na Índia

As pessoas se banham no rio todos os dias de manhã, ao nascer do sol. Motivo religioso – ao banhar-se no rio, estão se livrando de todos os pecados e se purificando.

Imagem 10 – quadro de W. Blake, pintor e escritor inglês do séc XVIII

Adão e Eva, em um estado de sentimento que não é positivo, pois eles estão em um estado de indiferenciação, presos em uma redoma. Paixões mal resolvidas, que criam situações negativas. Sentimentos mal trabalhados impedem que a pessoa veja os perigos a sua volta.

Imagem 11 – Quadro Fovista

Uso da cor e da forma intensa; Na vida real,a paisagem não é essa. mas o pintor não está pintando como ele vê e sim como ele sente. Muitas vezes, os sentimentos colorem as situações de uma outra maneira.

IMagem 12 – A cigana, de Henri Manguin

Não existe uma mulher com essas cores, mas a representação dos sentimentos permite essa liberdade. A fluidez dos sentimentos!

Imagem 13 – Picasso, autorretrato da fase azul

Fase azul, época em que estava muito deprimido, início da sua carreira. Expressão bem introspectiva, diferente do futuro Picasso. Os nossos sentimentos vão mudando ao longo da vida. Nada é estático, tudo pode ser movimento.

Imagem 14 – A passagem do Estige

Rio Estige, da mitologia, leva as almas para o reino dos mortos. No I Ching existe uma frase que diz o seguinte: “Atravessar a grande água”, que significa: atravessar o inconsciente (grande água), porque a água é um dos símbolos do inconsciente. Atravessar a água pode ser assustar. Enfrentar a travessia do inconsciente representa atravessar o desconhecido.

Assim, terminamos a apresentação da operação Solutio, ligada à função sentimento e elemento água.

Como anda as águas em sua vida? você está trabalhando os seus sentimentos, para manter a fluidez que é sinônimo de saúde?

 

 

 

jan 02

O Palhaço e o Psicanalista: como escutar os outros pode transformar vidas

Indico esse livro a todos os que se empenham em estar com o outro verdadeiramente, entender o que é dito, perceber os afetos que circulam em uma conversa, em um encontro de troca e de elaboração.

Poder refletir esses lugares – o da escuta e o da fala – que se intercambiam no diálogo, que muitas vezes causam estranheza e desconforto, bem como compreensão e pertencimento, é um grande desafio nos nossos tempos de mensagens rápidas no whatsapp, emojis intermináveis e ambivalentes, textos prontos enviados para uma lista impessoal, e por aí vai…

Mas, desafio aceito, inicia-se uma longa jornada de aproximação com aquilo que é mais próprio de cada pessoa – a sua essência. Tanto a essência de quem fala, quanto a de quem escuta. Por isso, o poder transformador proposto no título do livro.

Como é gostosa aquela conversa que nos acrescenta um novo conhecimento, um insight, um saber um pouco mais sobre quem está diante de nós e sobre nós mesmos. Pode ser concordando, discordando, pode ser falando de algo feliz ou triste… se soubermos escutar, sem prejulgamentos, sem disputas de ego, sem transformar o diálogo em um ringue, onde um saia vencedor, haverá sempre a possibilidade de somarmos ideias e experiências e sairmos mais ricos de cada encontro.

Um livro inspirador, certamente!

 

O Palhaço e o Psicanalista: como escutar os outros pode transformar vidas

Christian Dunker e Claudio Thebas

Planeta do Brasil

2019

 

jan 02

Sobre aprender novos olhares em 2020…

A arte de ser feliz

Houve um tempo em que minha janela se abria
sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada,
e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde,
e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Ás vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

Cecília Meireles

 

Comecei o ano com esse lindo poema de Cecília Meireles porque quero que a possibilidade de lançarmos novos olhares, de descobrir as delicadezas no cotidiano e de nos surpreendermos com o simples esteja presente em todos os dias desse novo ciclo!

Um lindo 2020 pra todos nós!!!

set 11

Onde moraram os nossos segredos?

Já parou para pensar em quantas coisas guardamos dentro de nós mesmos? Memórias, desejos, projetos, medos, sonhos… a lista é grande, e ter acesso a ela muitas vezes é dolorido. Mas deixar de olhar pode ser pior, pois perdemos a chance de nos enxergarmos como realmente somos, de nos vermos mais inteiros, inclusive reconhecendo nossas fraquezas. Só assim, buscando a integração da nossa luz e nossa sombra, de nossa coragem e nosso medo, daquilo que conhecemos com o desconhecido, é que poderemos ter vivências mais autênticas, escolher com nossa alma e não com um protocolo social, nos sentirmos livres para assumir o comando da nossa vida e cuidar amorosamente de nossa existência.

O grande problema é que geralmente não estamos dispostos a vasculhar as gavetinhas escondidas de nossa alma. Guardamos tão bem guardadas algumas coisas, que perdemos a pista de como chegar novamente lá. Guardamos porque temos medo do julgamento do outro, porque aprendemos que não podemos nos comportar assim ou assado, guardamos porque nos condicionamos a determinados padrões (familiares, culturais, sociais) que anulam o nosso modo de ser em nome de um “bem comum”.

Enfim, chega um momento na vida em que é urgente olhar para todos esses cantinhos de nosso ser e desentulhar memórias, dar outros destinos para certos sentimentos, redescobrir sonhos, acolher fraquezas e desapegar de tudo que carregamos, mas nesse momento, reconhecemos que não é nosso. É o momento de nos sentirmos mais leves, pois não carregamos mais aquilo que não nos pertence. É o momento de escutarmos mais o nosso coração e menos o barulho lá de fora. Aprendi, há pouco, que para os chineses, a mente reside no coração. Isso significa que só podemos fazer algo realmente sensato quando escolhemos com o coração e não só com a razão, como prega o nosso discurso ocidental.

Então, vamos ficar mais perto de nosso coração, de forma consciente, buscando a integração cada vez mais ampla do mundo que pulsa abaixo do que mostramos e do que queremos mostrar. Tem muita riqueza escondida dentro de nós mesmos. E para encontrarmos essa riqueza, é preciso paciência e determinação para trilharmos o caminho do autoconhecimento. Com certeza, é uma das jornadas mais lindas de nossa vida!

 

jun 06

Sobre ressignificar

Somos seres em constante construção, diante de uma realidade que nos convoca a fazer escolhas o tempo todo. Que bom termos a liberdade para fazê-las! E essa liberdade nos permite transformar as experiências mais dolorosas em algo construtivo, em algo que assuma um outro significado na nossa história. Essa é uma questão central para a Psicoterapia Fenomenológico-Existencial – a possibilidade de ressignificarmos as experiências que nos incomodam e nos limitam, em algo que nos fortaleça, que nos faça crescer em autoconfiança e autoestima, que nos dê contornos mais fortes sobre quem somos no aqui-agora, quem estamos sendo!

Venha conhecer mais sobre essa abordagem nos nossos cursos à distância!

 

jun 05

Operações Alquímicas – Coagulatio e a função Sensação

Neste texto, começarei a falar das operações alquímicas traçando uma correspondência com as funções psicológicas descritas por Jung em sua tipologia. O processo de individuação pode ser considerado como uma busca pela integração das quatro funções (Sentimento, Pensamento, Sensação e Intuição), para se chegar ao centro – Self, ou à Pedra Filosofal.

Sabemos que a energia psíquica atua de forma polarizada. Se ela está concentrada em uma função, a oposta ficará em falta. Para trabalhar esse equilíbrio em um processo arteterapêutico, propomos atividades que se relacionem inicialmente com a função principal, indo em direção às funções complementares até chegar na função inferior.

vamos começar falando sobre a função Sensação (relacionada à operação alquímica Coagulatio): a sensação tem um aspecto instintivo básico. Em nosso desenvolvimento, começamos a entrar em contato com o mundo através de nossas sensações: tocar, cheirar, ouvir, ver, sentir o gosto… essa é a maneira de nos conectarmos com a realidade, e depende apenas de nossa energia vital.

O mundo é concreto, é material, objetivo. Como consequência, o ser humano desenvolve a capacidade de agir de forma prática. O excesso de praticidade pode conduzir alguém a um materialismo absurdo! Todo mundo conhece pessoas assim, imagino! Já quem não tem a função sensação bem desenvolvida pode encontrar dificuldade em tomar decisões, em encarnar em uma ação, está sempre na dúvida.

Os sentidos estão ligados a aspectos simbólicos:

Visão: percepção visual, registro de objetos para que cada um possa se situar no mundo / Ver: compreender além das aparências – capacidade de ver subjetivamente. “Olha para mim enquanto estou falando” – a importância do olhar. Os olhos como janelas da alma. O terceiro olho: visão que transcendeu a dualidade.

Audição: registro de sons e ruídos do mundo – entender e prestar atenção. Falar é escutar a si mesmo (e essa ideia ganha um destaque fundamental no âmbito psicoterapêutico) / escuta interna, fala compreensiva que atinge o outro, mas também a si mesmo. “Falar no deserto”: fala que não é ouvida, não há retorno da escuta do outro. “Falar demais, sem dizer nada”. Valorizamos muito a palavra, o que nos leva a discussões cada vez mais complexas, pois “é bonito falar difícil!”. O que percebemos é um vazio nas falas prolixas, na escrita acadêmica… precisamos desenvolver a escuta e para isso é necessário abrir espaço para o silêncio, pois nossa sociedade anda barulhenta, ruidosa. Ninguém ouve nada!

Paladar: encontramos muitos significados simbólicos para o doce, o amargo… enfim, experiências doces são sempre as mais gostosas! São aqueles momentos em que desfrutamos de algo desesado, suave, delicado. Já as experiências amargas estão relacionadas a lembranças dolorosas. E quando “engolimos sapo”! É uma experiência nada agradável, de difícil digestão.

Olfato: é uma sensação muito remota, ligada a uma parte muito primitiva do cérebro. QUando desconfiamos de algo, costumamos dizer: “Algo não cheira bem!”. “Ter olfato aguçado” – capacidade de sentir, intuir algo. A intimidade sexual passa pelo cheiro do corpo da outra pessoa.

Tato: ligado à sensibilidade tátil, afeto, carinho, criatividade, habilidade de manusear as coisas com precisão. Existe o toque de cura e também aqueles que tem o “dedo verde” (pessoas que sabem cuidar muito bem das plantas).

Podemos perceber que atribuímos muitos significados simbólicos aos nossos sentidos.

E os nossos sentidos, enquanto função sensação, estão ligados à Coagulatio, pois esta consiste em tornar algo líquido ou gasoso em sólido (matéria, mundo concreto, elemento terra). Aprender a lidar com a matéria é fundamental. É importante sabermos materializar nossos planos, realizar nossos sonhos, torná-los sólidos e presentes em nossa vida. Jung usa uma expressão interessante, nesse sentido, ele diz que o arquétipo quer viver, quer tomar forma no mundo, precisa coagular!

E como concretizar ações no mundo, de forma equilibrada? Como adaptar nossos sonhos a uma possibilidade prática, sem perder o sentimento envolvida nisso?

Nossa civilização é super materialista, mas não sabe lidar com a matéria! Percebemos um desequílibrio absurso! O apego às aparências – do corpo ideal, da vida ideal, a busca em ter cada vez mais, ter posse das coisas, e nesse movimento, a chance de alguém se ver perdido é muito grande.

Outro ponto importante diz respeito a assumir a responsabilidade pelos próprios atos – o que muitos não conseguem fazer! A Coagulatio diz sobre agir e ser responsavel por essa ação. Quando isso não acontece, a pessoa fica sem raiz, não tem uma base sólida para se apoiar, falta chão, falta terra!

Quando uma pessoa vive só em função de atender suas necessidades materiais ela se torna embrutecida. Temos que trabalhar com as outras funções (pensamento, sentimento e intuição), para trazer o equilíbrio na dinâmica existencial dessa pessoa e o acesso mais profundo ao seu incosciente.

Vamos observar algumas imagens sobre essa temática. A primeira é a Venus de Willendorf.

Essa é uma imagem arquetípica, ligada à terra, à fertilidade (destaque para os seios e quadris), conexão com os instintos, reprodução e preservação da vida, em um sentido bem concreto. Mas a fertilidade não é só biológica, é simbólica também – de que forma utilizamos nossa criatividade em prol da evolução humana?

A próxima figura é uma escultura do artista Aristide Maillol, La Rivière,contemporâneo de Rodin.

Ele retrata o peso do corpo feminino, que chega a ter características quase masculinas. É uma figura fort, que se faz presente, necessariamente.

Outras obras de arte que retratam a operação Coagulatio, a função sensação e o elemento terra são as naturezas mortas.

E na próxima figura, temos uma gravura egípcia que enaltece o ato da agricultura.

Sabemos que a agricultura foi um imenso avanço para a nossa humanidade, que deixou de ser nômade, para se estabelecer na terra e formar as primeiras grandes civilizações. Cultivar a terra também pode ser entendido simbolicamente – como cultivamos a nossa própria terra? Como trabalhamos para realizar os nossos planos, para nossos sonhos desabrocharem?

A imagem seguinte é de Gustave Courbet, e mostra duas moças, uma mais relaxada, entregue à terra. Nos faz pensar na importância de abandonar-se a terra, sentir o chão, pisar firme, ter segurança, e simplesmente se entregar ao ciclo da vida que ela nos oferece.

No quadro a seguir temos As Banhistas, de Jean-Auguste Renoir.

Reparem nas formas arredondadas do feminino, que hoje é execrado em prol de uma estética totalmente anti-natural. Também temos o peso como característica forte nessa pintura.

Degas era um pintor que retratava cenas do cotidiano. No quadro abaixo, temos uma passadeira que parece estar totalmente integrada ao seu trabalho, sem sofrimento. Parece estar em paz consigo mesma, em seu cotidiano. O elemento terra relaciona-se à capacidade de trazer o prazer nas pequenas coisas, a entrega, a alegria, a presença relaxada.

Enfim, a operação Coagulatio nos convida a entrar na dimensão da matéria e sentir que ela é animada pelo nosso espírito. Assim, podemos sentir o nossos corpo energético, pois somos luz como as estrelas. Não somos matéria opaca, não somos algo morto. É a vivência que temos, em alguns momentos da vida, que nos faz sentirmos preciosos.

Portanto, Coagulatio se relaciona com concretizar, realizar, tornar algo sólido.

 

 

abr 20

Algumas ideias sobre o princípio feminino e linguagem simbólica

Hoje não escrevo um texto, mas compartilho algumas ideias que estão povoando meus pensamentos.

Não quero me preocupar em fazer ligações lógicas entre um parágrafo e outro. Quero apenas escrever livremente. Talvez no final, tudo faça sentido! Ou não, ainda…

Uma das principais características do princípio feminino da consciência é a intuição, porém essa característica não é valorizada pelo cientificismo, porque não há como mensurá-la, tampouco controlá-la. Mas é ouvindo a intuição que transformamos o que precisa ser trabalhado dentro de nós, como as operações que aconteciam dentro do vaso alquímico.

A imaginação é essencial para nossa vida. O corpo fala por imagens. Quando algo é racional demais, a experiência humana fica muito apequenada.

É preciso acolher e nutrir as imagens que surgem em nossas vivências, estarmos receptivos aos conteúdos psíquicos que emergem das experiências. Precisamos não ter pressa em entendê-las (desafio grande no mundo de hoje!). Heidegger tem uma frase que gosto muito: “Precisamos nos demorar nas coisas”, ou seja, ficar perto daquela experiência, deixar que ela se mostre mais, antes de colocarmos rótulos ou explicações para termos a falsa ideia de controle!

É preciso saber esperar, entrar em outro tempo, o tempo do inconsciente. O masculino pensa o tempo cronológico, o raciocínio causal-dedutivo, a explicação. O feminino anda em torno, coloca a questão no centro e começa a fazer conexões, sem a obrigação de chegar a algum lugar. Sabe porque está caminhando, fica perto do conteúdo inicial, mas deixa a compreensão surgir aos poucos – é o Kairós, o tempo qualitativo.

A falta de conexão entre cosciente e inconsciente é a fonte das desarmonias psíquicas.

O feminino é como a terra que acolhe a semente a deixar florescer, no seu tempo, no tempo possível. Então algo vem à tona, e você pode conviver com isso sem ter que entender de imediato. Esperar, conectar e compreender. Aprender o silêncio, a espera, a ação que é não ação (como no Taoísmo – deixar acontecer). Começar a trabalhar um conhecimento que é vivencial, e não intelectual.

Precisamos estabelecer a conexão do Ego com o Self. O Ego precisa ser forte porque ele está sofrendo todas as tensões que o mundo lhe apresenta. às vezes, ele não sabe por onde ir. O melhor, nesses momentos, é não fazer nada e acreditar que dentro de você há algo que se manifestará (Self). As experiências que as mulheres tem com seu corpo, de ordem hormonal, a prepara para isso.

As imagens que nos surgem, em pensamentos, em sonhos, fazem parte do mistério, da busca pela compreensão do humano. A luz da lua não nos permite enxergar com nitidez, mas nos traz a magia e o encanto; a luz do sol nos traz a clareza, a nitidez. Precisamos nos conectar com esses dois âmbitos – o da clareza e o do mistério. O que eu posso saber? O que ainda não sei nomear, mas posso sentir?

Conhecimento por Eros – o que relaciona, o que conecta, aproxima. Recebe, dá, cria relação.

O pensamento dirigido é linear, lógico, conceitual; O pensamento imaginativo expressa-se pelas imagens e tem uma linguagem poética, metafórica. Essa é a linguagem apropriada para a expressão dos símbolos.

Para Jung, o símbolo não tem significado fixo. As imagens são importantes porque elas se desdobram, diferente dos conceitos que são fechados. As imagens buscam outras imagens, e assim vai se formando uma cascata de imagens, que é a maneira de desenvolver a criatividade da psique.

Imagens provocam associações afetivas, evocam sentimentos e isso promove a valorização ética no ser humano. Imagens provocam associações sensoriais – sentir o cheiro de um lugar, frio, calor… As imagens despertam sensações estéticas – senso de beleza, equilíbrio, harmonia. Mas precisamos aprender a ler o simbólico, pois há significados que não são literais, estão ocultos.

As imagens possibilitam a conexão com o Self porque elas são sincrônicas, não obedecem o princípio causal-dedutivo. Elas obedecem o princípio do inconsciente.

Vivemos um grande paradoxo – Somos a civilização da imagem, mas são imagens vazias, sem lastro, que não tem um peso. Somos soterrados com tantas imagens sem sentido, que não reverberam nada em nós, que não produzem alimento para a alma.

Mas a imagem que tem um lastro arquetípico também precisa encontrar a acolhida do outro lado. O problema é que nos acostumamos tanto com esse vazio, que muitas vezes deixamos passar o nque realmente importa.

Três coisas revelam a atrofia da imaginação e precisam ser trabalhadas:

  • Profusão de imagens absurdas. A pessoa reproduz várias imagens, não consegue parar de pensar, a cabeça fica a mil. Dispersão, confusão, falta de foco.
  • Fixação em uma única imagem: a pessoa é incapaz de ver o assunto por outro viés, só consegue enxergar de uma perspectiva. Unilateralidade e esteriotipia do pensamento.
  • Incapacidade de imaginar qualquer coisa:  a pessoa fica presa ao concreto, àquilo que acontece, estritamente.

O mais importante é a certeza de que podemos trabalhar com essas dificuldades, a fim de superá-las – através do trabalho artístico, é possível transitar por outros terrenos, abrir novas portas de acesso ao mundo interno, descobrir ou destravar a nossa criatividade, e assim, promover saúde, em seu sentido mais amplo!

 

abr 12

As técnicas expressivas na Arteterapia

As técnicas expressivas da Arteterapia nos oferece um caminho de elaboração dos símbolos que estão presentes em nossas vivências, desde sempre! Nossa linguagem é simbólica, e a psicoterapia, grosso modo, pode ser entendida como o processo de elaboração dos símbolos através da fala que se estabelece entre cliente e terapeuta.
As técnicas expressivas são inúmeras – pintura, escultura, desenho, dramatização, escrita criativa, entre outras. E todas elas podem ser utilizadas no contexto arteterapêutico.
Os símbolos possuem um aspecto verbal, do qual o Ego tem acesso – é o momento em que a pessoa fala sobre uma vivência e interpreta isso junto com terapeuta, localizando-a em sua história de vida, fazendo ligações com outros símbolos, tendo alguns insights. Mas também temos os aspectos não verbais contidos nos símbolos, ou seja, tudo que se refere ao mundo arquetípico do ser humano: características irracionais, fantásticas, tudo o que o Ego só tem acesso através do símbolo.
Nesse sentido, os recursos expressivos nos permitem entrar nesse campo simbólico e elaborar as nossas vivências, através da nossa imaginação. Byington, analista junguiano, diz que “se a psique fosse um pássaro, a imaginação seria suas asas”, pois é com a imaginação que podemos entrar nesse mundo da fantasia, acessar essa parte do símbolo que não é verbal, e, ao elaborar esses conteúdos, expandimos nossa consciência.
A elaboração simbólica, através de um trabalho expressivo, integra a razão e a emoção, as duas grandes polaridades do ser. Pelo trabalho expressivo, a pessoa transita nessas duas dimensões – ora mergulhada no emocional, fazendo uma pintura, por exemplo, ora no racional, ao falar sobre a sua pintura. Dessa forma, a pessoa vai construindo os significados daquela vivência e ampliando a compreensão sobre sua história, sobre si mesma.

Algumas atividades interessantes, que qualquer pessoa pode fazer em casa mesmo:
Pinte um sonho
Desenhe os seus sentimentos
Escreva uma conversa entre você e seu medo, por exemplo.
Faça uma colagem com recortes de revistas, com um tema a sua escolha
Enfim, as possibilidades são muitas, é só dar asas à imaginação.
E se quiser um trabalho mais profundo, dentro de um processo arteterapêutico, entre em contato conosco, será muito bom poder te receber!

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