A Ontologia de Martin Heidegger em Ser e Tempo

 

 

Compartilharei com vocês algumas ideias sobre o projeto inicial de Heidegger, pois tenho recebido por e-mail várias sugestões para falar um pouco mais sobre esse tema.

 

Para começar, é preciso dizer que Heidegger se apoiou inicialmente na proposta metodológica apresentada por Husserl – a Fenomenologia – para construir o seu pensamento acerca da compreensão do Ser.

 

Há diferenças entre o projeto de Husserl e o de Heidegger.

 

De uma maneira muito simplista, pode-se dizer que Husserl estava preocupado com Filosofia, ou seja, ele queria devolver a esta o rigor perdido ao longo de sua História. Ele buscava entender como se dava o conhecimento, na tentativa de estruturar o pensamento da modernidade (pós Descartes). Buscar o rigor do pensamento significava, para Husserl, poder chegar às coisas mesmas, uma vez que cada fenômeno estava captado em diversos recortes interpretativos, tornando a relação homem-mundo cada vez mais atravessada por leituras diferentes, cada qual reivindicando a sua soberania. Por isso, Husserl fala da consciência enquanto intencionalidade, para entender essa relação homem-mundo.  Assim, ele desconstrói a consciência em si (proposta pelo idealismo) e abre mão do objeto/coisa em si (proposta do realismo).

 

Heidegger não estava preocupado com a construção do conhecimento, e sim com a compreensão do Ser. Esse filósofo dizia que o homem é ser-no-mundo – todas as coisas que encontramos no mundo já estão aí, amarradas em uma rede de significações e sentidos. Mesmo que essa trama não seja dada por esse homem, ela já está aí, no mundo, sem que se precise ter um caráter singular, mas pode estar dentro de uma rede significativa para todos. Exemplo: quando eu falo em “casa”, tenho uma noção de casa, não importando se é um sobrado ou uma casa térrea. Husserl diria que existe uma essência das coisas, e que essa essência é de caráter universal, que remete a um caráter comum a um grupo de homens.

 

Mas a forma como cada homem se relaciona com a coisa que é dada, ou que já se apresenta em uma determinada maneira, é única e define a intencionalidade da consciência.

 

A consciência intencional, apresentada por Husserl e tomada por Heidegger, diz que o homem é co-relação com mundo, e a Fenomenologia será o estudo dessas vivências estabelecidas entre homem e mundo. Uma dica muito interessante de leitura sobre essa questão é o livro “O paciente psiquiátrico”, de Van den Berg. O livro nos apresenta como um determinado paciente experimenta/relaciona-se com a espacialidade, com o corpo, entre outras categorias comuns a todos os homens, mas únicas em cada relação.

 

A Fenomenologia husserliana abre uma porta para compreensão dessas vivências. Mas como já foi dito, ele está muito mais interessado em captar a essência de cada relação. Heidegger se apropria do método fenomenológico proposto por Husserl, dando-lhe outro contorno quando interroga pela questão do Ser.

 

O que entendemos por Ser? Qual o sentido do Ser?

 

Na verdade, o Ser está sempre abrindo uma certa compreensão em relação às coisas, que será expressa na linguagem, a qual é a morada do Ser. É na estruturação da linguagem que o Ser se mostra o tempo todo. Dizemos: “As ruas são largas”, “O céu é azul”.

 

E quando nos referimos ao homem? Qual é a diferença entre os entes que são dados, e o ente ‘homem’?

 

Heidegger nos responde o seguinte: o homem é um ente que seu ser também se faz questão para si mesmo: “o que eu busco ser?”, “Quem eu sou?”, “Que sentido a vida tem para mim?”.

 

Viver está na ordem dessas indagações.  E enquanto posso dizer que uma pedra é, o mesmo não se aplica ao homem, pois o seu Ser é indefinível. No momento em que eu digo que o homem é tal coisa, no instante seguinte ele já mudou, pois ele está sendo o tempo todo, o homem é vir-a-ser.

 

Portanto, a preocupação de Heidegger não é definir o Ser, mas compreender o sentido do Ser. O homem é indagador do real, e assim ele vai nomeando as coisas, na medida em que entra em contato com elas. Por sua vez, as coisas também se apresentam abrindo possibilidades de ser, e dessa relação (homem/mundo), significados vão sendo gestados. Cada ente traz o seu ser e os significados atribuídos são vários possíveis. Exemplo: um homem cansado após uma longa caminhada olhará para uma árvore como oportunidade de descanso embaixo de sua sombra fresca. Um poeta olhará para essa mesma árvore como inspiração para escrever uma poesia, falando que suas raízes comportam a terra e os homens e sua copa abriga os deuses.

 

Fica claro que o homem é a abertura em que o Ser se dá. E o projeto de Heidegger, em Ser e Tempo, foi estudar o ser-aí (que é o homem) em sua cotidianeidade, em relação com as coisas, com os outros e com o mundo.

 

Os entes se apresentam a nós o tempo todo e a relação que estabelecemos com esses entes (coisas) estará sempre falando algo de nós mesmos – exemplo: deixo determinada porta aberta ou fechada.

 

A relação do ser-aí consigo mesmo faz com que cada homem reflita sobre si mesmo, busque clareza sobre seu modo de ser, sobre seu projeto de vida e como se debruça sobre as próprias possibilidades.

 

O ser-aí com os outros nos faz perguntar: de que forma essa relação está pautada com os outros? – com paciência, indiferença dominação, negligência, entre outras infinitas possibilidades.

 

Portanto, o projeto inicial de Heidegger em Ser e Tempo é apresentado através da relação de Dasein em três perspectivas: com os outros, com as coisas e consigo mesmo.

 

Continuaremos expondo esse projeto nos próximos textos.